11/10/18

Dos cheiros da guerra


O primeiro cheiro da guerra será o da dignidade calcinada, sinal sempre tardio de que faz caminho a morte. A dignidade, na sua virtuosa linearidade, deforma o possível, até à ignição fatal. Não quebrará, por via de ficar ali a pairar, sobre mortos e vivos, e porque acerca dela, ou daquilo que dela remanesce, haverá sempre uma linha escrita, um conjunto de notas a fazerem-se música evocativa, uma estátua erigida em praça central. 
Nunca cheirei a guerra dos batalhões, dos exércitos com generais e soldados nivelados nessa arte de fazer órfãos e viúvas à conta de explosões e estilhaços, de balas perdidas ou achadas em campos, cidades, esquinas ou trincheiras. Antecipo outras, travadas no tempo da nossa paz, entre uma bebida fresca de Verão e duas ou três palavras sobre o tempo e os tempos. Será a guerra o esplendor máximo dessa convicção de que o mundo tem um centro e de que, por privilégio ou acaso, se está lá. Ouvi, há dias, alguém, um assumido bom português, acolhedor de turistas, fazedor de amigos entre estrangeiros em esplanada à beira-mar, a explicar a quatro viajantes italianos que o seu Porto "era a cidade mais fascista de Portugal, aquela em que havia menos misturas, por haver lá poucos pretos e gente que não era como nós". Era um quase-jovem, auto-proclamado viajante e viajado que, alegadamente em busca de sustento, teria chegado a Antuérpia, onde encontrara ordem e prosperidade. Lá vira turcos, "uns animais que matavam e comiam porcos no meio da rua, mas não em Antuérpia, onde já viviam em sociedade", ao contrário do que se passaria em Portugal. E vira, pela primeira vez, nas imediações das ruas onde espantosos diamantes seriam lapidados e trocados por dinheiros, algo de tão fantástico que gerara a convicção de que só seria produto de fábulas, por não caber em outras histórias: um judeu. Acrescentava, no crescendo dessa epifania, algo que lhe parecera mais inefável, se assim o pudesse nomear: o judeu tinha cheiro. Era, explicava, um cheiro que diferia do dos ciganos ou do dos pretos e, claramente, não era "como o nosso". Não resiste a dignidade a golpes de odor corporal diferente do nosso, desferidos por alguém que usa a cabeça para arquivar medos e memórias feitas de verdades como muçulmanos a comer porcos em ruas. Será esse o outro cheiro de uma qualquer guerra, se classificações bélicas pudermos estabelecer: o do poder fabulador do medo, urdindo armas e argumentos certeiros em terreno propício, consolidando crenças e desejos de justiças para defender "os nossos, os que cheiram como nós, os que se parecem connosco", os que ignoram a verdade enquanto a fitam inebriados, os que se creem capazes de criar mundos, sem descanso ao sétimo dia. 
Não estarão à vista armistícios para guerras apocalípticas em mapas e territórios de gente que se acha 'nós', por contraponto ao resto do mundo. Arrisco profecia dupla: continuará o mundo a ser palmilhado por gente alheia a fronteiras, com forte e digno cheiro a nós; haverá amanhã, entre Nós, emergência de heróis improváveis.

Sem comentários: