23/11/09

Comia cerejas como palavras saídas de rubros lábios e dizia coisas inefáveis sem pudor. Subia as esferas de sistemas solares e de vias lácteas na esperança de salvar mundos. Rendia-se à dor e matava-lhe a sede, como cerejas vermelhas, de um vermelho escuro enraivecido, a cor do diabo à solta numa rua qualquer.
Podia ter carregado alguém ao colo, talvez um previsível filho, talvez um pai ébrio ou uma mãe dorida de não saber mais nada sobre coisa nenhuma. Podia ter sido algo mais e roubaria ao livro dos livros saber e luto sufucientes para cobrir de vergonha um deus qualquer, tão anónimo como uma rua qualquer, com mulheres a seduzir dinheiro e homens em busca de um onírico cio consolador. Podia ter-se vestido com um vestido-nuvem e seria um doce anjo decadente.
Enlouqueceu à sombra de si mesma. Compreendeu que o fogo cerrado e cruzado da guerra eram cerejas e palavras sem pudor, desejo de artifício, memória fátua, futuro envelhecido.

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