31/12/23

#1

Começou a correr, experimentando novas técnicas, só com as pontas dos pés primeiro, depois sentindo todo o pé em contacto progressivo com o chão. Nada de novo. Começara a experimentar o corpo há meses, a sentir-lhe os limites, o cansaço, a vê-lo todo sem os olhos abertos.  Falou-lhe disto e ela riu-se, dizendo-lhe ao ouvido que era tonto, que seria sempre uma criança grande. Ali ficaram a pensar se alguma vez veriam os filhos dos filhos, ou se resistiriam a cruzar um oceano ou se gostariam sempre de se ver todas as manhãs. Não terão ambos pensado em tudo isto ao mesmo tempo. Ele terá pensado em como teria de encontrar uma boia capaz de os salvar a ambos em caso de naufrágio da jangada. Seria uma jangada então. Mais pessimista, pensaria em testar a boia com lágrimas, em como encontraria lágrimas suficientes para testar a boia. Mais otimista, consideraria levar na jangada canteiros com plantas já crescidas capazes de sobreviver a regas de água salgada ou de lágrimas. Ela pensaria em como continuariam a cruzar-se no barco, em pleno oceano, caso se zangassem, na véspera, por causa da incúria dele em não ter previsto água doce suficiente até à próxima escala, por estar demasiado focado em água com sal. E choveria tanto, que esqueceriam em que água navegava o barco e iria este navegando pela chuva.

20/10/20

O que poderias tu fazer se eu te aparecesse à porta com dois coelhos mortos à ilharga, como um caçador, o cabelo pintado de vermelho, uma tatuagem com a data do nascimento de Jesus Cristo no braço direito, e um quimono verde vestido? Terias de fazer alguma coisa? Quererias fazer alguma coisa? Sabes que isso nunca irá acontecer. De tudo o descrito nessa aparição, a concretização mais provável seria aparecer-te à porta com os coelhos, dois ou três, comprados num talho. Caçador de talho seria algo suportável? Ainda assim, considera esta composição que te sugiro para que se possa, um dia, fazer uma natureza morta memorável. 
 

27/12/19

Versículo 50 (8º fora do formato)

Seremos todos assim: o cabelo sob luz amarelada, dourada, cairá sem grandes pudores sobre a testa, as costas arqueadas e as mãos em busca de búzios pequenos na areia. Buscaremos então, como outrora, búzios sem propósito, pelo menos sem outro propósito que o de nos imaginarmos a encher frascos de búzios. Seremos apenas um de muitos enchedores de frascos com búzios e os meios justificarão um fim adiado. Os frascos de búzios terão odor de putrefação, ao fim de um tempo e haverá que encher o frasco com álcool, nova etapa na vida de búzio morto de encher frasco. A transição indolor para búzios ébrios e acumulados em frascos ocultará coleção de vidas em conchas e outros vícios sem propósito. 

03/12/19

Versículo 49 (7º fora do formato)


A igreja terá coluna azul com capitel, no altar. A meio da coluna, de lugar como casa de pássaros, sairão borboletas, leveza expectável e cores por inventar em incontáveis partículas voláteis. Ascenderão assim almas a céus, tudo feito de cores que não alcançaremos nunca, por razões que desconheceremos ou nos serão indiferentes.
Haverá flores, no teu dia, apesar de ti. Serás, caso a eternidade esteja nos teus planos, pétala-asa comprada em florista feita posto dos correios pela voragem pragmática do tempo económico. Ascenderás à paz final liberto de arranjos compostos para apodrecer em tumba fria e será assim o primeiro dia da tua glória entre os esplendores da luz perpétua.

20/10/19

Versículo 48 (6º fora do formato)

Pouco a pouco, passo a passo, virá a morte, como sabes, ou virás tu.
Serás como um destino que se olha ao espelho,
algo que se espera sem outro desejo que o da liberdade.
Passo a passo, virá a morte,
escrevendo memórias e futuros,
obituários e epígrafes, frutos e paradoxos,
para que conste de um qualquer relatório que tenha a morte obrigação de apresentar.
Ou virás tu, com gestos novos,
formas voluptuosas,
desejos, amores e outros elementos de redenção,
para que tudo isso conste do teu caderno de boas acções.
Um destes dias, chegarei a mim,
antes da morte, ou antes que me mostres tu quem sou.
Será algo como epifania discreta,
para que conste ter eu procurado chegar.
Só para que conste.

26/02/19


Um dia, um daqueles dias em que chova até tudo ser água, levo-te a dar uma volta de barco. Digo-te isto, como quem promete um presente e não como ameaça, como anúncio de gravidez a contragosto, ou de muro em que se esbarra para lamentação. 
No dia em que te escrevi isto, chovia. Não tanto que tudo fosse água, mas chovia o suficiente para que, da loja de decoração, do outro lado da rua, se saísse com a água a meio da canela, descalças as clientes, sacos ao alto juntamente com os sapatos de ir às compras.
Nesses dias, a rua esburacada fica mar calmo, com pequenas ondas terminadas por espuma a rondar as entradas das casas. Tento tirar uma foto, hesito entre a janela e a porta do café, acabando por perder o lugar para um japonês que me propõe partilha do espaço à beira-porta. Faço-lhe sinal de que aguardo, de que temos tempo. Temos tempo e água suficientes para dar voltas de barco e para esperar que o japonês tire fotos, as fotos todas. Os carros e as inúmeras motorizadas, continuam a passar, no pico da maré alta de chuva, porque se conhece o fundo daquele mar. Navegador experimentado navega em qualquer mar, sem recear tempestades, dir-se-ia com sabedoria ancestral de pacotilha. No cruzamento, os cães que costumam disputar os restos do lixo, acumulados no lugar dos contentores desaparecidos, perderam tudo. Ao fim de umas horas, terão à disposição mais lixo e andarão por ali a roçar as patas feridas, ou as orelhas rasgadas, ou as crostas sem pelo. Nunca vi ali um cão que não tivesse pago, em parte maior ou menor da sua carne, uma qualquer taxa ontológica, um tributo à sorte de existir. 
A chuva leva tudo e traz outro tanto. Isto não quer dizer nada, mas também to disse na carta que te escrevi. Eu escrevo-te cartas, porque é esse o meu compromisso, escrever cartas. Escrevo-te cartas sobre coisas que não vimos, nem ouvimos, nem sentimos, como voltas de barco que não sei se daremos porque isso não é um compromisso, mas uma promessa. O compromisso não pode ser quebrado, porque não é sonhável, ao contrário da promessa. Um destes dias, sonho-te uma volta de barco e iremos os dois por ali, até tudo ser água. 

01/02/19

Chegam sempre aos sábados. Ou então só os vejo aos sábados, por estar desatento em outros dias. Ou chegam mesmo aos sábados, pela manhã, quando o vento não é suficiente para os desviar dali, para lhes dar outras ideias. Tenho sempre a impressão de que são trazidos para aqui por rotina semanal de pássaro, como ir beber um café à pastelaria, ou comprar o semanário no quiosque. Amanhã, sábado, irei beber um café com eles e, juntos, leremos as notícias e veremos anúncios de cosméticos e de automóveis para compra com crédito vantajoso. 
Encontrei o meu cão ao fim da noite, ao fundo do jardim, perto da entrada da casa. Pouca luz ainda, não se distinguiria uma fibra de tecido a contra-luz. Tinha sido aquele o seu trabalho da noite, o seu turno de ser: no empedrado, um enorme buraco redondo tinha sido escavado, como se o tivesse feito com um qualquer dispositivo mecânico, perfeito, cilíndrico. Nele, tinha plantado um enorme cedro, cujo topo não era possível de avistar, tarefa impossível. Olhava para mim, esperava-me, confiava na minha aprovação. Somos uma dupla imparável, eu e o cão que não tenho.

26/12/18

O cão arrastou-se desde a sombra do carro até ao meio da rua. Tossia, o cão. Movimentava-se, indiferente à presença da morte, por entre os buracos da rua. Desviaram-se dele o carro dos bombeiros e dezenas de motas. Concluí que sobreviveu após alguns minutos, quando o avistei a beber água junto a uma fenda num cano. Foi caminhando, o cão, indiferente à avaliação que fui fazendo da sua capacidade para sobreviver. Encontrámo-nos, horas depois, junto à baía. Tossia enquanto arqueava o lombo. Olhava o mar como se lhe sentisse o infinito, pensei eu. Engano-me, irremediavelmente, sempre que perspectivo infinitos de cão.

15/11/18

Subtraí-me
com o tempo
a corpos alheios

Tornei lassos
por vontade
fios e costuras

Fiz-me aurora tardia
inteiro
transmutado sem sangues apressados

Não me quero dieito por envolvimento de trepadeiras viçosas

12/11/18

Versículo 47 (5º fora de formato)

47
Cubro-me hoje de um desespero quieto
daqueles de andar por aí a perder penas e pedaços de nuvem

Partiu-se-me hoje um ramo do limoeiro
e fiquei a sentir-lhe a dor de não mais sermos os mesmos


No dia que se seguirá a hoje
aportaremos
outros
a terra húmida com sabor a limão


24/10/18

Versículo 46 (4º fora de formato)

46
Florescem mortos em metódicas embarcações viradas por mar

São os teus mortos tranquilos
pés em mar quase firme
olhar firme em terra

Cortas canas e cordas
evocas jangadas
vigorosas nas suas caudas-leme
esquivas
 
Tomaremos refrescos
em homenagem aos que partiram sem vela iluminante de fé

Digo-te
enquanto esperas
que não haverá planos de contingência para o dia em que chegar a notícia.

Floresceremos
apesar de nós 
viola tricolor
em qualquer lugar de vento propício

11/10/18

Dos cheiros da guerra


O primeiro cheiro da guerra será o da dignidade calcinada, sinal sempre tardio de que faz caminho a morte. A dignidade, na sua virtuosa linearidade, deforma o possível, até à ignição fatal. Não quebrará, por via de ficar ali a pairar, sobre mortos e vivos, e porque acerca dela, ou daquilo que dela remanesce, haverá sempre uma linha escrita, um conjunto de notas a fazerem-se música evocativa, uma estátua erigida em praça central. 
Nunca cheirei a guerra dos batalhões, dos exércitos com generais e soldados nivelados nessa arte de fazer órfãos e viúvas à conta de explosões e estilhaços, de balas perdidas ou achadas em campos, cidades, esquinas ou trincheiras. Antecipo outras, travadas no tempo da nossa paz, entre uma bebida fresca de Verão e duas ou três palavras sobre o tempo e os tempos. Será a guerra o esplendor máximo dessa convicção de que o mundo tem um centro e de que, por privilégio ou acaso, se está lá. Ouvi, há dias, alguém, um assumido bom português, acolhedor de turistas, fazedor de amigos entre estrangeiros em esplanada à beira-mar, a explicar a quatro viajantes italianos que o seu Porto "era a cidade mais fascista de Portugal, aquela em que havia menos misturas, por haver lá poucos pretos e gente que não era como nós". Era um quase-jovem, auto-proclamado viajante e viajado que, alegadamente em busca de sustento, teria chegado a Antuérpia, onde encontrara ordem e prosperidade. Lá vira turcos, "uns animais que matavam e comiam porcos no meio da rua, mas não em Antuérpia, onde já viviam em sociedade", ao contrário do que se passaria em Portugal. E vira, pela primeira vez, nas imediações das ruas onde espantosos diamantes seriam lapidados e trocados por dinheiros, algo de tão fantástico que gerara a convicção de que só seria produto de fábulas, por não caber em outras histórias: um judeu. Acrescentava, no crescendo dessa epifania, algo que lhe parecera mais inefável, se assim o pudesse nomear: o judeu tinha cheiro. Era, explicava, um cheiro que diferia do dos ciganos ou do dos pretos e, claramente, não era "como o nosso". Não resiste a dignidade a golpes de odor corporal diferente do nosso, desferidos por alguém que usa a cabeça para arquivar medos e memórias feitas de verdades como muçulmanos a comer porcos em ruas. Será esse o outro cheiro de uma qualquer guerra, se classificações bélicas pudermos estabelecer: o do poder fabulador do medo, urdindo armas e argumentos certeiros em terreno propício, consolidando crenças e desejos de justiças para defender "os nossos, os que cheiram como nós, os que se parecem connosco", os que ignoram a verdade enquanto a fitam inebriados, os que se creem capazes de criar mundos, sem descanso ao sétimo dia. 
Não estarão à vista armistícios para guerras apocalípticas em mapas e territórios de gente que se acha 'nós', por contraponto ao resto do mundo. Arrisco profecia dupla: continuará o mundo a ser palmilhado por gente alheia a fronteiras, com forte e digno cheiro a nós; haverá amanhã, entre Nós, emergência de heróis improváveis.

18/09/18

Versículos 40-45

40 Chamam-nos pelo nome, o nosso, o de cada um, e somos nomeados crianças, o melhor do mundo enquanto a ingenuidade beberá de um trago duas a três bebidas reconfortantes. Será declarada a emergência de fitas e adornos ternos, sem sal nem terra, sem cor nem luz.  Com isso, criaremos o barro diáfano e teremos merecidos véus a adensar-nos futuros. 

41 Não virão adorar-Vos, Senhor, quaisquer povos da Terra. Não os tereis, Senhor, a Vossos pés, suplicantes de redenções. 42 Virão os animais ferozes perguntar-Vos o quanto podem ainda dilacerar carnes inocentes antes da sua perdição, da sua longa marcha penitente para o fundo do teu poço de chamas embrulhadas em papel de Natal. 43 Não tereis respostas, as que nunca sonhastes e sempre parecem ecoar nos Vossos céus. 44 Escrevereis listas de milagres normativos a declamar em dias de aflição, os braços caídos e os olhos no chão, perdida a esperança no poeta criador. 45 Oremos pela salvação das feras, pela germinação de paraísos. E renovareis a face da Terra. 

07/09/18

Os dias arrastavam-se até às noites. À noite, havia toda a seiva das ruas a espalhar vapor e a deixar de lado o torpor das vidas cumpridoras. Era a hora propícia aos ociosos, acometidos de frémito indomável, virtuosos na arte daquele desperdício que se adivinha desde o fundo da rua, por entre o vapor.

21/08/18

Corres com uma fita atada à cintura, vermelha, ou verde, talvez uma combinação de ambas as cores, no cabelo outra, semelhante. O vestido é amarelo e esvoaça na corrida, tudo alheio a critérios de estética combinatória adulta e contemporânea. O pó, nas pernas morenas do fim de Verão e nas meias brancas, oculta já a original cor dos sapatos. Corres e olhas para trás, a rir, como fazem as crianças a brincar, em vertiginosos jogos de apanhar e de fugir. Reforças o vigor das gargalhadas quando está eminente a captura, antes de iludir quem te persegue, no mesmo jogo. Assim suspeito que se poderiam ter tecido as nossas paixões.

05/07/18

fado: quando passas à minha rua

Hoje vens à minha rua. Vens porque assim calha, porque se interpõe esta rua entre a tua e aquela onde vais comprar pão. Passas, sempre a evitar o esgoto a céu aberto, as tripas de peixe que uma vizinha deitou para a rua, o saco de lixo rasgado pelo cão vadio, os restos de comida que outra vizinha deixa para gatos-de-ninguém, o ruído emanado do anacrónico rádio  de um outro vizinho, portas abertas para intimidades sem higienes íntimas ou públicas. Passas por aqui, como vinha vindimada e eu farejo-te a todas as distâncias, sem pudores. Um destes dias, ofereço-te as minhas chaves da minha rua, em sessão solene, para que possas atravessar o território como uma das nossas, como cão, como eu.

04/07/18

Versículos 35 - 39

35 Haverá, para os dias, algo como marés. Estará o curso de cada volta da terra sujeito a ondulações, de intensidade e cadência diversas, e surgirão homens e mulheres, de todas as idades, que apenas existirão nas praias, como espuma. Na linha da costa, florescerão corpos e haverá habituação a essa terminação de ondas, entre avanços e recuos tornados padrão. 36 Surgirá discussão em torno do fenómeno e concluir-se-á, por via de ciências, que há em tudo o visto, ouvido e intuído, influência da lua e de outros corpos celestes a descrever rotas no vazio. Tudo isto se aceitará, não como fatalidade, mas como conhecimento novo e celebrado. 37 Será subtraída às praias a areia, e ocupado o espaço por epitáfios dispostos sem método dedutível, citações de trechos heróicos a sobrevoar mortes, tranquilidade induzida em consciências inquietas. Todos dormirão sonos diferentes, embalados pela memória do mar. 38 O mar perderá consciência de si e sentir-se-á imensa vala comum representável em partitura para orquestra a definir. Sairá do mar previsível lamento vão, coisa imperceptível, sem valor civilizacional. Ninguém reparará, porque não há reparação possível para além do espanto que causará. O espanto será condição de subsistência e critério de valoração estética. 39 Seremos todos convocados para o tempo do espanto e do lamento vãos.

11/06/18

dos regressos 1

"A rua tinha um padrão semelhante ao de outras tantas." Tantos fragmentos da minha vida têm, no início da sua narração, ao ser recordados, a forma como se aborda o percurso numa rua, fragmento proto-contemplativo nessa ignição de memória. Lembrar-me equivalerá a contar-me a partir da rua que talvez percorresse com mais frequência ou maior intensidade, das sequências dos empedrados, dos cimentos com diferentes tonalidades e consistências perto das portas de algumas casas, do cimento de cada um a personalizar a sua entrada, posto de fronteira entre público e privado, conquista de consoladores centímetros de propriedade duvidosa. Quando se muda de terra à medida que se cresce, transportam-se esses locais como galerias cristalizadas à espera que a imaginação e a memória as actualizem sem pudor e com a fúria de quem regressa a um mundo subitamente subdimensionado. Regressar, após anos, muitos, de ausência, aos lugares da infância, da criança que percorria, a pé ou em fugas sôfregas de bicicleta, espaços intermináveis entre o jardim e a praça, entre a minha casa e o mercado municipal, confronta-me com a insignificância corpórea de então, tornando a respiração da memória quase insuportável, por via da constrição do espaço que a realidade inexoravelmente opera. No regresso, tudo é perto, a tudo se acede em parcos minutos e sem esforço, o murete pelo qual caminhava em frente à biblioteca, despromovido de promontório a degrau, a zona do fundo do jardim público é uma pequena curva no terreno, a enorme igreja das penosas missas é uma quase-capela de pequenas exuberâncias barrocas, algo que sempre me transcendeu por estar concentrado em brincar, nos bancos corridos, com a miniatura do Ford Capri e a do carro de combate verde, com um canhão preto, rotativo, no topo. Todas as batalhas eram sem consequências, a do carro de combate verde em perseguição do Capri vermelho escuro, as dos dois ou três bonecos que escondia no bolso como garantia auto-imposta de que sobreviveria a tanto ritual, as do céu e do inferno que se esgueiravam do alto por entre exortações de que unidos ao universo bendisséssemos ao Senhor Deus do próprio universo e por entre garantias cantadas de que os nossos passos se deteriam às portas de Jerusalém. Vão ficando, como impressões a tender para o indelével, os padrões das ruas, menos erodíveis pelo tempo, pela alteração das escalas, pela percepção de olhos que vêm de outro ponto, que já viram mais, talvez demasiado de umas coisas e tão pouco de outras, pelos medos de quem se fez homem. Faço parágrafos, nas histórias que me conto sobre mim, sobre o que teria sido eu no meu mundo, quando me desdobro e me sobrevoo, ou mergulho em mim, a cada batida seca de porta de carro a fechar. A cada viagem, uma complexa liturgia de paciências, desconfortos, receios e descobertas rumo a outro lugar, reincarnações e eternos retornos.

01/05/18

No tempo em que eu nutria um ódio profundo por Frank Carlucci

No tempo em que eu nutria um ódio profundo por Frank Carlucci, os carros enferrujavam com mais frequência, ao fim de relativamente pouco tempo. Muitas vezes, tudo parecia começar nas embaladeiras, outras vezes nos guarda-lamas. Percebia, melhor do que o ódio a um Carlucci, cujo rosto só conheci muitos anos depois, o surgimento da ferrugem nos carros, sobretudo nos que passavam mais tempo perto do mar, ou nos que tinham de cruzar oceanos em cargueiros para chegarem cá, como se dizia ser comum nos Toyota, vindos do Japão. Percebi sempre, nos silêncios e nas palavras do meu avô, que estaria o crápula do Carlucci feito com o interesseiro do Soares, pelo que, um belo dia, acordaríamos e teríamos os americanos à porta e a CIA 'a tomar conta disto'. Os americanos eram, nas tardes de Verão, os cowboys que tinham dado cabo dos índios, sobretudo dos Sioux e dos Comanche, as minhas tribos favoritas. Quando brincava no imenso faroeste que era o corredor da minha avó, procedia-se à devida reparação de honras e injustiças, por via dos bonecos. Os cowboys eram chacinados em emboscadas ardilosas, desenhadas por bravos índios astutos sem recurso a tantas armas de fogo como os seus inimigos, cobertos de privilégios, tudo isto por entre os caules de patas-de-cavalo e de outras flores aparentadas, em vasos que ladeavam todo aquele território de combates, com cavalos e homens de peles brancas e vermelhas. 
Nessa altura, ouvia falar de reuniões de comissões de moradores e de votações de braço no ar, das quais se fugia ou nas quais se participava com excitação; falava-se de gente que ameaçava os filhos de serem levados por comunistas, caso não comessem diligentemente a sopa,  da emissão da televisão, que abria e fechava, dos desenhos animados, que terminavam muitas vezes com koniec, do filho desta e daquela, que tinham voltado da guerra ou que por lá tinha ficado, mais ou menos inteiros, em ambas as situações.
Ouvi, por esses dias, falar de retornados, como o Severo e a mulher, que chegavam apenas com histórias amargas, relatos da vida boa de África interrompida por tudo aquilo. E decoravam as casas com peças diversas, em madeira escura ou avermelhada, bustos da gente de lá, coisas exóticas. Reparava, por esses dias, que éramos todos brancos e não havia gente de outra cor. Para alguns, isso era uma coisa boa: aquela gente de África era dada à violência porque odiavam os brancos, como se via em Lisboa e como tinham tantos visto antes de fugir. Eu tinha um amigo, na praia, filho do Tomé Alcino, funcionário do Ministério da Fazenda em Angola, e de uma pretinha que ele tinha deixado por lá, em palavras do próprio. Tinha sido melhor assim, segundo a tia, irmã do Tomé, relatava no café. Para ela, o Tomé tinha tido sorte em não a ter trazido numa confusão qualquer em fronteira africana, porque o miúdo, o Rui, era um bom miúdo, apesar de não ter mãe e não tinham aquela situação da outra para gerir. Era bastante escurinho, continuava a tia no seu relato público, mas  era bonitinho, com uma feição fina, muito meigo. Com a educação que lhe tinham dado e estavam a dar, haveria de se fazer um homem. Ele encolhia os ombros e sorriamos porque queríamos sair dali e ir brincar com o resto do pessoal e porque tudo aquilo talvez nos parecesse virar o Rui do avesso. Ainda a propósito de cores de pele, por esses dias, o casal Figueira, com os seus inúmeros filhos, muitos deles encalhados na escola, presos numa vida sombria de casa sem pão e dias confusos, de coisas mal resolvidas e, tantas vezes, mal lavadas, chorava no ombro da minha mãe porque uma das filhas, com aparente propensão para os estudos e parecendo dar surpreendentes sinais de se orientar, estava a querer casar com um preto, de nome impronunciável para ela 'e para qualquer um de nós', acrescentava ela. Um preto que tinha vindo jogar à bola para o clube da terra, duas desgraças, como declarava a Figueira. Eu pensei sempre que poderia ser altura de alguém ter um filho como o Rui, que não teria de deixar a mãe na fronteira com o Zaire mas, aparentemente, os Figueira, perceberam que, de entre os males todos da vida, aquele seria o pior. Não viveu nenhum dos Figueira para testemunhar a casa com pão e paz de forma da filha, escriturária, e do Braima Cassamá , reformado de carreira fraca na bola e taxista respeitado.
O tempo do ódio ao Carlucci desconhecido era o tempo ideal para se detestar fascistas sem partido ou simpatizantes do MIRN, para se desconfiar de comunistas que pertenciam a partidos que apareciam e desapareciam, para eu achar que a UDP era melhor do que o MES, apenas talvez porque o Gilberto me dava propaganda colorida que guardava algures por detrás do balcão da repartição de finanças. Era o tempo único para se insultar chefes de estado a golpes de 'Spínola, zarolho, cabeça de repolho', para gritar no recreio 'a terra a quem a trabalha, os ricos que comam palha', para ver passar à janela inúmeras ceifeiras, em atrelados puxados por tractores, a caminho de uma unidade colectiva de produção, o povo a tomar conta daquilo que o Ferreira da Cunha e que o Marques Frazão não tinham conseguido segurar, nem com a ajuda da Guarda Republicana, depois de anos a explorar o povo. Era o momento propício a pensar em mártires como Catarina Eufémia, ou em figuras épicas como Lenine, nos seus sósias lusos, nomeadamente, no Major Vítor Alves e, de forma inegável, em Lopes Cardoso. Foi esta altura, mais coisas menos coisas, momento propício a que tivesse o meu avô, comunista convicto, votado convictamente em Pinheiro de Azevedo, talvez porque o achasse 'um tipo sem papas na língua', ficando em choque quando o facínora fundou o PDC, outro partido de fascistas. Lenine era, na sua pose, um sonhador, que eu imaginava sempre de perfil, com vento no rosto e feição pouco definida, como o Che Guevara estampado na tshirt branca que perdi enquanto saltava de uma rocha para a areia, convencido de que voava, roupa que levei no corpo em dia de rotineira confissão, após catequese, com o austero Monsenhor Correia. Da confissão resultou recado para casa, explicitando que os paizinhos deveriam saber que não era aquela indumentária de visitar a casa do Senhor. Não era o Monsenhor Correia, que o meu avô afirmava, sempre convictamente, ser um impenitente fascista, dado a perceber o fascínio que sonhadores como Lenine ou Che exerciam sobre o miúdo que eu era, ao contrário de tipos sisudos como Fidel ou Estaline. Nunca sonhou o Monsenhor Correia que eu vibrava, nos Jogos Olímpicos, pelos atletas de Leste, ficando particularmente empolgado com o hino da URSS, CCCP, ou que Vasco Gonçalves me enervava na sua agitação televisiva, ao contrário de Joaquim Letria, a fumar durante intermináveis entrevistas e debates vistos em família, ou de Vasco Granja, ou da inefável personagem shakespeariana que era Otelo Saraiva de Carvalho.
Por esses dias, construí, com as folhas do meu cadernos de gramática, uma frota robusta para oferecer ao Almirante Rosa Coutinho, alguém de aparência épica que eu juraria reconhecer de filmes como Os dez mandamentos. Eram barcos de papel, com feitios e tamanhos diversos, segundo os propósitos a que se destinariam e os objectivos que o almirante determinasse, naquilo que ele iria fazer de bom e que não foi nunca o mais relevante nem o mais claro para mim. Foram todos empilhados segundo as suas compatibilidades e armazenados no aparador da sala, por entre umas taças que raramente usámos para beber espumante, até terem sido descobertos pela minha mãe, após denúncia da professora, preocupada com a penúria inexplicável e injustificável de folhas disponíveis para o estudo das regras fundamentais da língua.
Foi o tempo para ver eu assim o meu mundo, antes do tempo em que os comunistas passaram a ser detestáveis e os tipos da KGB o alvo de um ódio que se estendia a Brejnev, Andropov ou Chernenko, por ter achado que percebia tudo sobre as Grandes Guerras, incluindo a Fria. Tudo isto vi, ouvi e pensei eu antes de descobrir a América e antes de achar que o John Kennedy seria um paradigma de sonhador, retratado de perfil e, como se impõe, com vento no rosto, bem antes de Otelo ter passado a bandido infame, em manobra de tragédia clássica.

Permanece, num dos lugares mais recônditos de mim, a sensação de que detesto Frank Carlucci, esse putativo patife cinzento,  lado a lado com a estranheza que emana do ódio tido em criança e mantido numa camada qualquer de ser-se pessoa destinada a isto, a ter ódio a um tipo que não conhecia.

Quando a tua idade perfaz o mesmo número de anos que terá durado uma ditadura, percebes, se não o percebeste antes, que és tu a contradição, alimentada por nós feitos e desfeitos de memórias difusas ou claras, pouco importa. Quando passaste uns anos pela vida, a defender umas coisas, a refutar outras tantas, a defender algumas das que antes refutaste ou a refutar outras tantas das já defendidas, percebes, se não o percebeste ainda, que chegaste ao dia em que as tuas certezas caducaram e os paradoxos sem explicação te povoam e traçam o teu mapa, que pareces precisar incessantemente de justificar. Se, ao sair do teu local de trabalho, em véspera de aniversário de revolução, te oferecem um inadvertido cravo, e com ele ficas a pensar em como o teu território apresenta um relevo irregular, de topografia incoerente e elevado risco sísmico,  factores que não consegues ajustar numa fórmula pacífica, isso pode apenas ser evidência de que estás vivo e de que és um homem com possibilidade de futuro.
Pelo sim, pelo não, vai e não voltes, Frank Carlucci.