01/05/18

No tempo em que eu nutria um ódio profundo por Frank Carlucci

No tempo em que eu nutria um ódio profundo por Frank Carlucci, os carros enferrujavam com mais frequência, ao fim de relativamente pouco tempo. Muitas vezes, tudo parecia começar nas embaladeiras, outras vezes nos guarda-lamas. Percebia, melhor do que o ódio a um Carlucci, cujo rosto só conheci muitos anos depois, o surgimento da ferrugem nos carros, sobretudo nos que passavam mais tempo perto do mar, ou nos que tinham de cruzar oceanos em cargueiros para chegarem cá, como se dizia ser comum nos Toyota, vindos do Japão. Percebi sempre, nos silêncios e nas palavras do meu avô, que estaria o crápula do Carlucci feito com o interesseiro do Soares, pelo que, um belo dia, acordaríamos e teríamos os americanos à porta e a CIA 'a tomar conta disto'. Os americanos eram, nas tardes de Verão, os cowboys que tinham dado cabo dos índios, sobretudo dos Sioux e dos Comanche, as minhas tribos favoritas. Quando brincava no imenso faroeste que era o corredor da minha avó, procedia-se à devida reparação de honras e injustiças, por via dos bonecos. Os cowboys eram chacinados em emboscadas ardilosas, desenhadas por bravos índios astutos sem recurso a tantas armas de fogo como os seus inimigos, cobertos de privilégios, tudo isto por entre os caules de patas-de-cavalo e de outras flores aparentadas, em vasos que ladeavam todo aquele território de combates, com cavalos e homens de peles brancas e vermelhas. 
Nessa altura, ouvia falar de reuniões de comissões de moradores e de votações de braço no ar, das quais se fugia ou nas quais se participava com excitação; falava-se de gente que ameaçava os filhos de serem levados por comunistas, caso não comessem diligentemente a sopa,  da emissão da televisão, que abria e fechava, dos desenhos animados, que terminavam muitas vezes com koniec, do filho desta e daquela, que tinham voltado da guerra ou que por lá tinha ficado, mais ou menos inteiros, em ambas as situações.
Ouvi, por esses dias, falar de retornados, como o Severo e a mulher, que chegavam apenas com histórias amargas, relatos da vida boa de África interrompida por tudo aquilo. E decoravam as casas com peças diversas, em madeira escura ou avermelhada, bustos da gente de lá, coisas exóticas. Reparava, por esses dias, que éramos todos brancos e não havia gente de outra cor. Para alguns, isso era uma coisa boa: aquela gente de África era dada à violência porque odiavam os brancos, como se via em Lisboa e como tinham tantos visto antes de fugir. Eu tinha um amigo, na praia, filho do Tomé Alcino, funcionário do Ministério da Fazenda em Angola, e de uma pretinha que ele tinha deixado por lá, em palavras do próprio. Tinha sido melhor assim, segundo a tia, irmã do Tomé, relatava no café. Para ela, o Tomé tinha tido sorte em não a ter trazido numa confusão qualquer em fronteira africana, porque o miúdo, o Rui, era um bom miúdo, apesar de não ter mãe e não tinham aquela situação da outra para gerir. Era bastante escurinho, continuava a tia no seu relato público, mas  era bonitinho, com uma feição fina, muito meigo. Com a educação que lhe tinham dado e estavam a dar, haveria de se fazer um homem. Ele encolhia os ombros e sorriamos porque queríamos sair dali e ir brincar com o resto do pessoal e porque tudo aquilo talvez nos parecesse virar o Rui do avesso. Ainda a propósito de cores de pele, por esses dias, o casal Figueira, com os seus inúmeros filhos, muitos deles encalhados na escola, presos numa vida sombria de casa sem pão e dias confusos, de coisas mal resolvidas e, tantas vezes, mal lavadas, chorava no ombro da minha mãe porque uma das filhas, com aparente propensão para os estudos e parecendo dar surpreendentes sinais de se orientar, estava a querer casar com um preto, de nome impronunciável para ela 'e para qualquer um de nós', acrescentava ela. Um preto que tinha vindo jogar à bola para o clube da terra, duas desgraças, como declarava a Figueira. Eu pensei sempre que poderia ser altura de alguém ter um filho como o Rui, que não teria de deixar a mãe na fronteira com o Zaire mas, aparentemente, os Figueira, perceberam que, de entre os males todos da vida, aquele seria o pior. Não viveu nenhum dos Figueira para testemunhar a casa com pão e paz de forma da filha, escriturária, e do Braima Cassamá , reformado de carreira fraca na bola e taxista respeitado.
O tempo do ódio ao Carlucci desconhecido era o tempo ideal para se detestar fascistas sem partido ou simpatizantes do MIRN, para se desconfiar de comunistas que pertenciam a partidos que apareciam e desapareciam, para eu achar que a UDP era melhor do que o MES, apenas talvez porque o Gilberto me dava propaganda colorida que guardava algures por detrás do balcão da repartição de finanças. Era o tempo único para se insultar chefes de estado a golpes de 'Spínola, zarolho, cabeça de repolho', para gritar no recreio 'a terra a quem a trabalha, os ricos que comam palha', para ver passar à janela inúmeras ceifeiras, em atrelados puxados por tractores, a caminho de uma unidade colectiva de produção, o povo a tomar conta daquilo que o Ferreira da Cunha e que o Marques Frazão não tinham conseguido segurar, nem com a ajuda da Guarda Republicana, depois de anos a explorar o povo. Era o momento propício a pensar em mártires como Catarina Eufémia, ou em figuras épicas como Lenine, nos seus sósias lusos, nomeadamente, no Major Vítor Alves e, de forma inegável, em Lopes Cardoso. Foi esta altura, mais coisas menos coisas, momento propício a que tivesse o meu avô, comunista convicto, votado convictamente em Pinheiro de Azevedo, talvez porque o achasse 'um tipo sem papas na língua', ficando em choque quando o facínora fundou o PDC, outro partido de fascistas. Lenine era, na sua pose, um sonhador, que eu imaginava sempre de perfil, com vento no rosto e feição pouco definida, como o Che Guevara estampado na tshirt branca que perdi enquanto saltava de uma rocha para a areia, convencido de que voava, roupa que levei no corpo em dia de rotineira confissão, após catequese, com o austero Monsenhor Correia. Da confissão resultou recado para casa, explicitando que os paizinhos deveriam saber que não era aquela indumentária de visitar a casa do Senhor. Não era o Monsenhor Correia, que o meu avô afirmava, sempre convictamente, ser um impenitente fascista, dado a perceber o fascínio que sonhadores como Lenine ou Che exerciam sobre o miúdo que eu era, ao contrário de tipos sisudos como Fidel ou Estaline. Nunca sonhou o Monsenhor Correia que eu vibrava, nos Jogos Olímpicos, pelos atletas de Leste, ficando particularmente empolgado com o hino da URSS, CCCP, ou que Vasco Gonçalves me enervava na sua agitação televisiva, ao contrário de Joaquim Letria, a fumar durante intermináveis entrevistas e debates vistos em família, ou de Vasco Granja, ou da inefável personagem shakespeariana que era Otelo Saraiva de Carvalho.
Por esses dias, construí, com as folhas do meu cadernos de gramática, uma frota robusta para oferecer ao Almirante Rosa Coutinho, alguém de aparência épica que eu juraria reconhecer de filmes como Os dez mandamentos. Eram barcos de papel, com feitios e tamanhos diversos, segundo os propósitos a que se destinariam e os objectivos que o almirante determinasse, naquilo que ele iria fazer de bom e que não foi nunca o mais relevante nem o mais claro para mim. Foram todos empilhados segundo as suas compatibilidades e armazenados no aparador da sala, por entre umas taças que raramente usámos para beber espumante, até terem sido descobertos pela minha mãe, após denúncia da professora, preocupada com a penúria inexplicável e injustificável de folhas disponíveis para o estudo das regras fundamentais da língua.
Foi o tempo para ver eu assim o meu mundo, antes do tempo em que os comunistas passaram a ser detestáveis e os tipos da KGB o alvo de um ódio que se estendia a Brejnev, Andropov ou Chernenko, por ter achado que percebia tudo sobre as Grandes Guerras, incluindo a Fria. Tudo isto vi, ouvi e pensei eu antes de descobrir a América e antes de achar que o John Kennedy seria um paradigma de sonhador, retratado de perfil e, como se impõe, com vento no rosto, bem antes de Otelo ter passado a bandido infame, em manobra de tragédia clássica.

Permanece, num dos lugares mais recônditos de mim, a sensação de que detesto Frank Carlucci, esse putativo patife cinzento,  lado a lado com a estranheza que emana do ódio tido em criança e mantido numa camada qualquer de ser-se pessoa destinada a isto, a ter ódio a um tipo que não conhecia.

Quando a tua idade perfaz o mesmo número de anos que terá durado uma ditadura, percebes, se não o percebeste antes, que és tu a contradição, alimentada por nós feitos e desfeitos de memórias difusas ou claras, pouco importa. Quando passaste uns anos pela vida, a defender umas coisas, a refutar outras tantas, a defender algumas das que antes refutaste ou a refutar outras tantas das já defendidas, percebes, se não o percebeste ainda, que chegaste ao dia em que as tuas certezas caducaram e os paradoxos sem explicação te povoam e traçam o teu mapa, que pareces precisar incessantemente de justificar. Se, ao sair do teu local de trabalho, em véspera de aniversário de revolução, te oferecem um inadvertido cravo, e com ele ficas a pensar em como o teu território apresenta um relevo irregular, de topografia incoerente e elevado risco sísmico,  factores que não consegues ajustar numa fórmula pacífica, isso pode apenas ser evidência de que estás vivo e de que és um homem com possibilidade de futuro.
Pelo sim, pelo não, vai e não voltes, Frank Carlucci.

Sem comentários: