"A
rua tinha um padrão semelhante ao de outras tantas." Tantos fragmentos
da minha vida têm, no início da sua narração, ao ser recordados, a forma
como se aborda o percurso numa rua, fragmento proto-contemplativo nessa
ignição de memória. Lembrar-me equivalerá a contar-me a partir da rua
que talvez percorresse com mais frequência ou maior intensidade, das
sequências dos empedrados, dos cimentos com diferentes tonalidades e
consistências perto das portas de algumas casas, do cimento de cada um a
personalizar a sua entrada, posto de fronteira entre público e privado,
conquista de consoladores centímetros de propriedade duvidosa. Quando
se muda de terra à medida que se cresce, transportam-se esses locais
como galerias cristalizadas à espera que a imaginação e a memória as
actualizem sem pudor e com a fúria de quem regressa a um mundo
subitamente subdimensionado. Regressar, após anos, muitos, de ausência,
aos lugares da infância, da criança que percorria, a pé ou em fugas
sôfregas de bicicleta, espaços intermináveis entre o jardim e a praça,
entre a minha casa e o mercado municipal, confronta-me com a
insignificância corpórea de então, tornando a respiração da memória
quase insuportável, por via da constrição do espaço que a realidade
inexoravelmente opera. No regresso, tudo é perto, a tudo se acede em
parcos minutos e sem esforço, o murete pelo qual caminhava em frente à
biblioteca, despromovido de promontório a degrau, a zona do fundo do
jardim público é uma pequena curva no terreno, a enorme igreja das
penosas missas é uma quase-capela de pequenas exuberâncias barrocas,
algo que sempre me transcendeu por estar concentrado em brincar, nos
bancos corridos, com a miniatura do Ford Capri e a do carro de combate
verde, com um canhão preto, rotativo, no topo. Todas as batalhas eram
sem consequências, a do carro de combate verde em perseguição do Capri
vermelho escuro, as dos dois ou três bonecos que escondia no bolso como
garantia auto-imposta de que sobreviveria a tanto ritual, as do céu e do
inferno que se esgueiravam do alto por entre exortações de que unidos
ao universo bendisséssemos ao Senhor Deus do próprio universo e por
entre garantias cantadas de que os nossos passos se deteriam às portas
de Jerusalém. Vão ficando, como impressões a tender para o indelével, os
padrões das ruas, menos erodíveis pelo tempo, pela alteração das
escalas, pela percepção de olhos que vêm de outro ponto, que já viram
mais, talvez demasiado de umas coisas e tão pouco de outras, pelos medos
de quem se fez homem. Faço parágrafos, nas histórias que me conto sobre
mim, sobre o que teria sido eu no meu mundo, quando me desdobro e me
sobrevoo, ou mergulho em mim, a cada batida seca de porta de carro a
fechar. A cada viagem, uma complexa liturgia de paciências,
desconfortos, receios e descobertas rumo a outro lugar, reincarnações e
eternos retornos.
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