11/06/18

dos regressos 1

"A rua tinha um padrão semelhante ao de outras tantas." Tantos fragmentos da minha vida têm, no início da sua narração, ao ser recordados, a forma como se aborda o percurso numa rua, fragmento proto-contemplativo nessa ignição de memória. Lembrar-me equivalerá a contar-me a partir da rua que talvez percorresse com mais frequência ou maior intensidade, das sequências dos empedrados, dos cimentos com diferentes tonalidades e consistências perto das portas de algumas casas, do cimento de cada um a personalizar a sua entrada, posto de fronteira entre público e privado, conquista de consoladores centímetros de propriedade duvidosa. Quando se muda de terra à medida que se cresce, transportam-se esses locais como galerias cristalizadas à espera que a imaginação e a memória as actualizem sem pudor e com a fúria de quem regressa a um mundo subitamente subdimensionado. Regressar, após anos, muitos, de ausência, aos lugares da infância, da criança que percorria, a pé ou em fugas sôfregas de bicicleta, espaços intermináveis entre o jardim e a praça, entre a minha casa e o mercado municipal, confronta-me com a insignificância corpórea de então, tornando a respiração da memória quase insuportável, por via da constrição do espaço que a realidade inexoravelmente opera. No regresso, tudo é perto, a tudo se acede em parcos minutos e sem esforço, o murete pelo qual caminhava em frente à biblioteca, despromovido de promontório a degrau, a zona do fundo do jardim público é uma pequena curva no terreno, a enorme igreja das penosas missas é uma quase-capela de pequenas exuberâncias barrocas, algo que sempre me transcendeu por estar concentrado em brincar, nos bancos corridos, com a miniatura do Ford Capri e a do carro de combate verde, com um canhão preto, rotativo, no topo. Todas as batalhas eram sem consequências, a do carro de combate verde em perseguição do Capri vermelho escuro, as dos dois ou três bonecos que escondia no bolso como garantia auto-imposta de que sobreviveria a tanto ritual, as do céu e do inferno que se esgueiravam do alto por entre exortações de que unidos ao universo bendisséssemos ao Senhor Deus do próprio universo e por entre garantias cantadas de que os nossos passos se deteriam às portas de Jerusalém. Vão ficando, como impressões a tender para o indelével, os padrões das ruas, menos erodíveis pelo tempo, pela alteração das escalas, pela percepção de olhos que vêm de outro ponto, que já viram mais, talvez demasiado de umas coisas e tão pouco de outras, pelos medos de quem se fez homem. Faço parágrafos, nas histórias que me conto sobre mim, sobre o que teria sido eu no meu mundo, quando me desdobro e me sobrevoo, ou mergulho em mim, a cada batida seca de porta de carro a fechar. A cada viagem, uma complexa liturgia de paciências, desconfortos, receios e descobertas rumo a outro lugar, reincarnações e eternos retornos.

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