16/11/17

terra de fraternidade

João, ou Paulo (não sei qual serias tu)

estranha forma esta de, finalmente, te dar uma palavra. Faço-o no cumprimento de um dever, assim o sinto.
Nasci e não nascemos os dois. Disse-me a nossa mãe, no dia do nosso aniversário, há sete ou oito anos, mais coisa menos coisa, com um sorriso e o terno abraço que sempre parece procurar, que se celebrava o dia em que eu te tinha morto. Disse-mo a mim, homem a caminho de maduro, de forma inequívoca, como se ter eu visto a luz do dia fosse natural fruto de uma qualquer criminalidade seminal alegre, uma espécie de génio precocemente revelado do infanticídio intra-uterino. Disse-o com o sorriso de júbilo maternal e com a violência que talvez apenas as mães possam ter, como se recordasse a primeira vez que, para jogar ao pião em condições, se tivesse acidentalmente partido um vaso sem qualquer importância no quintal, valendo isso uma complacente reprimenda. Assim passaria eu a ter certezas, se dúvidas restassem?
Por incrível que te pareça, não fiquei chocado no momento, ou não vivi essa notícia como choque. Apenas registei o despropósito da declaração, sugeri-lhe que se sentasse, porque vinha cansada, como sempre parece andar. E assim ficámos, juiz, réu e testemunhas, naquele torpor transitório, disjuntores disparados para proteger equipamentos.
Perguntei-me, depois, ontem, o que acharias tu disto. Sempre foste o miúdo, sem nome e de rosto imperscrutável, que brincava na sombra, sem que nos aproximássemos. Ficavas, invariavelmente, na penumbra que sempre se adensava quando pensava onde estarias, como se o conforto de te saber ali não se pudesse fazer acompanhar do prazer de te ouvir, de te saber a fisionomia e o que ela teria de sobreponível com a minha. Quando te avistava, de joelhos, a brincar no limite de distância segura, mesmo que te voltasses na minha direcção, sempre o cabelo te caía naturalmente sobre o lado quase visível do rosto. Ali ficavas, presente e oculto. Dou-me conta hoje de que não me recordo de ti com mais de sete anos, ou oito, no máximo. Verão, calor, o tronco nu e uns calções verdes que a avisada penumbra fez cinzentos, ter-te-ei avistado pela última vez assim, a brincar, em espaço-tempo cinzento. Não me lembro de me ter despedido de ti e talvez resida aqui o impulso de te escrever estas linhas, o dever de te desocultar por esta via, porque tudo em nós é dúvida, se exceptuarmos a forma como nos quiseram narrar. E até nisso aceito perceber que, quando não nascemos os dois, tu te tivesses convertido, aos olhos de quem nos concebeu, no eterno projecto imutável e eu tivesse passado a ser a parte visível da Grande Dissensão, só por estar vivo, em cada centímetro crescido, em cada poro, em cada gota de sangue, em cada mudança, em cada palavra afinal. A culpa, a de ninguém, não será para aqui chamada, por não trazer claridade ou benefício que possam justificar garras infectas cravadas nas nossas costas por tempo mais indeterminado ainda do que aquele que poderemos ter aqui. Ficam as palavras, as que fui proferindo quando te pedia, sem esperar resposta audível, as mais variadas opiniões, as que me davam notícias de ti, as que me descreviam a mim e te evocavam, as que descreviam e narravam a forma como talvez tenhamos mesmo passado a ser eu. Deram-me os nossos nomes e, com isso, foram geradas equívocas operações de aritmética ontológica. Nunca percebi o que em nós foi soma, subtracção, divisão, multiplicação, ou que combinações de tudo isso se operaram em território tão excessivamente exíguo para tanto. Para que não nos percamos, para este efeito, parece prudente que sigamos o curso dos nomes. São os nomes palavras e tenho vindo a aprender o respeito que estas merecem no seu labor, sínteses generosas, tecido cicatricial. Agora que termino, talvez me dê conta de que, no tempo que levou o juntar estas letras, foste deixando a penumbra, dobraste a esquina, onde costumavas brincar de joelhos, deixaste de estar por ali. Quase arrisco intuir que a consumação do afastamento apenas quererá significar que foste e és, de facto, mas não como tantas vezes te esperei, a crescer comigo, a imagem, a cada dia mais falaciosa e protegida pela penumbra, de um tipo como eu, à qual eu acrescentaria similitudes e diferenças, desejos expressos em catálogo.
Se não for para mais nada, servem estas linhas para perceber a dimensão e a intensidade dessa enorme fantasia condenada de sermos os dois adultos, a conversar pela noite fora, após a ceia de Natal, a pensar na alegria, sempre insuficientemente confessada, de poderem os nossos filhos brincar uns com os outros, ou de poderem as nossas mulheres criticar os nossos defeitos menores comuns, aqueles que, dir-nos-iam, mais teriam pesado na forma como se teriam apaixonado por nós. Riríamos e os nossos abraços seriam quentes, por estarmos todos, literalmente todos, vivos.
Julgo estar em curso, em boa hora, a convalescença decorrente de ter sido crua, unilateral e maternalmente oficializado como teu algoz. Haverá, em terra de fertilidade duvidosa, esperança, por se ir fazendo luz e caminho de entendimento? Nunca o saberemos, não é?

Da minha parte, ficam finalmente em dia as despedidas. No final, seja isso o que for e quando for, teremos sido o que pudemos ser e isso, por si só, terá de ter bastado.


O teu irmão.
João Paulo

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