Já não se lembrava bem de como tinha começado tudo aquilo. Provavelmente, teria começado por vítimas de guerras pornograficamente exibidas em noticiários, com todo o seu sangue, todo o seu vazio, todo o ódio e toda a anulação, todas as fomes, todas as amputações, toda a terra seca, toda a mãe incapaz de manter vivo o filho que lhe saíra das entranhas. Teria começado por aí, provavelmente. E deu-lhes nomes. Deu nome a todos os rostos que se cruzaram com o dela, ainda que em sonhos ou pesadelos ou no chão à saída de casa. Teria passado por muitos outros, filhos e pais de muitas guerras e catástrofes e teria desaguado no imenso mar dos que lutam consigo próprios, contra si próprios. Lembrava-se agora de que teria sido algo assim. Especializou-se em observar essas guerras civis a uma só voz e num só corpo e deu-lhes nomes, a todos, em pequenos pedacitos de papel cortados irregularmente, à mão. Chegara assim aos que estão sós. Tinha feito esse percurso do sofrimento mais óbvio para o menos óbvio e não notava que os nomes sentissem a diferença.
Levantou-se um dia. Arranjou-se como de costume, simples. Bebeu uma chávena de leite e pegou na caneta de tinta permanente. Virou todos os nomes, os mais recentes de cada uma das pilhas, para baixo, como se estivessem completas aquelas tarefas. Escreveu um último nome e colocou-o num dos pequenos pilares de papel. Murmurou algo e sorriu tranquila. Saiu de casa, deixando a porta entreaberta.
Provavelmente todos morremos por razões estúpidas. Provavelmente, há quem consiga aguardar.
9 comentários:
nossa q bacana...vc escreve bem, tem uma forma parecida com a minha, mas claro que com sua identidade, nada de imitações baratas, somente semelhanças boas e muito agradáveis!
lendo vc, reparo a mim.
Sei, aprendi por aí que ...minha identidade só é percebida quando se quem é o outro...ou seja, vocÊ!
bjs
olá
tou mto triste...
sinto a sua ausencia no meu blog e pergunto-me se é porque ele é tão mau que a não mereço
mas por outro lado estou muito contente... os seus post continuam a ser maravilhosos
1 sorriso muiuto luminoso
Lana
Provavelmente todos morremos por razões estúpidas. Provavelmente, há quem consiga aguardar.
Muito provavelmente terás razão e infelizmente que assim é.Textos de excelente intensidade dramática...
um passo apenas.
entre a vida e a morte.
um pequeno passo.
escreves...sem apelo.firme.mente
*
Não acredito nisto! Acabo de deixar um comentário que me deu trabalho e desapareceu por internet lenta... lenta como a vida e como certas mortes estúpidas.
Enfim! Bem Baudolino, nesse comment tb dizia que era mesmo um intervalo. O resto já nem me lembro.
Abraço amigo.
J.
Guardamos nos bolsos da memória muitos papelinhos com nomes. Gostei muito destes teus textos. O meu aplauso.
bjs
Tenta ouvir "Cowbys and Angels" ou "Mother's pride" de George Michael...
Tem tudo a ver com este post. Sobretudo com o poema...
CSD
não me canso de ler estes posts **
Muito bom, parabéns!
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