18/10/10

palavras infectas e pouco interessantes 1

-Um pobre vive exactamente como os detentores do dinheiro esperam que ele viva, Doutor.
- E quem lhe disse isso?
-Ninguém. Fui eu próprio.
-Pois…
-Li no jornal.
-Bem me parecia…
-Porquê?
-Porque me parece uma frase feita…
-Por qualquer pessoa menos por mim?
-Eu não disse isso.
-Disse.
-Não, não me ouviu dizer isso.
-Ouvi, Doutor. Eu oiço vozes, lembra-se? E ouvi o seu desdém.
-Pois…
-Esse desdém que repetiu agora. Pois… Sou o que sou. Tenho a minha história pessoal contra mim.
-Ninguém lhe disse isso. Foi sempre o J quem o referiu, quem construiu essa história.
-Essa narrativa, não é, Doutor?
-Se quiser.
-E se as vozes me deixarem, não é?
-Eu não disse isso.
-Pois…
-Conseguiu.
-O quê?
-Esta pequena vingança, o ‘Pois…’
-Pois… Estive bem. Devolvi-lhe o ‘Pois…’ Tenho competências dialógicas avançadas, Doutor. Tenho treinado com as vozes…
-Eu não disse isso.
-Nunca diz, Doutor. Eu digo tudo, é isso. E agora vou voltar para a sala onde me esperam os meus amigos malucos, cada um com as suas vozes, os seus comprimidos, o seu vazio pessoal. Diga, Doutor. Diga que acabou o nosso tempo por hoje e mande-me para a penitência. O que devo rezar para expiar os meus pecados?

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