-Não acabou o tempo. Apetece-lhe falar da sala?
-Eu não disse isso.
-Disse eu. Pergunto-lhe se lhe apetece falar da sala.
-Nem por isso. Já disse o que queria sobre o assunto.
-Não me parece.
-Então diga o que é que lhe parece que eu quero dizer.
-Parece-me que está muito quezilento comigo. Há dias assim, não é J?
-Não gosto que me chame J.
-Foi você quem me pediu, lembra-se?
-Devem ter sido as vozes que me mandaram, lembra-se?
-Bem, se calhar…
-Acabou o nosso tempo, hoje.
-Não acabou. E como quer que lhe chame?
-Pelo meu nome. Sou um fantoche nas mãos de sabe Deus quem mas tenho um nome, como o Doutor e toda a gente.
-Sim. E eu devo tratá-lo por…
-Sabe muito bem.
-Não, não sei. Já ficou agressivo várias vezes porque não gosta que eu o trate de certa forma.
-Pois…
-E então…
-Júlio… de Matos.
-Tem a certeza?
-Assim toda a gente fica logo a saber.
-O quê?
-Que sou maluco.
-Outra vez…
-São as vozes, Doutor.
-Pois… E o que é um maluco, Júlio de Matos?
-Nunca me tinha insultado… Pelo menos, assim.
-Porque o tratei por Júlio de Matos? Foi você quem pediu, ou estou a inventar?
-Era ironia.
-Então afinal, quer que o trate como?
-Por nada. Por Maluco, sem ironia.
-Não vou tratá-lo assim. Não sei o que é um maluco.
-Claro que sabe. Pode ser por J. Trate-me por Jota, de janela, de javardo, de ‘Já lá vai o tempo em que eu era bom da cabeça’.
-Isto do nome foi apenas para gastarmos o tempo com uma coisa que o J já sabia em que é que ia dar, certo?
-Certo. Porque o que eu quero é falar da sala, certo?
-Eu não disse isso.
-Pois claro que não disse. E eu digo que me vou levantar e que hoje o nosso tempo acabou. Estou farto destas conversas de merda. São tudo tretas. Há dois anos que venho aqui e vejo-o sempre com essa cara de Deus a revelar a porra dos mandamentos. É muito esperto, tão esperto que me fará vomitar a porcaria toda que me atormenta até as vozes deixarem de mandar em mim e tudo. Vai-me sair tudo pela boca, tudo. E vou ficar limpo e livre de tudo o que me faz querer matar e matar e matar e matar. E a minha vida vai deixar de ser uma merda. E eu vou ser feliz, um maluco feliz.
-J, se calhar terminou o nosso tempo, hoje. Já acalmou um pouco depois de ter dito palavrões e de ter embirrado comigo? E isso do ‘matar, matar’… está a falar a sério? Não me parece…
-Claro que não. Como todos os malucos, libertei agressividade e agora atinjo um ponto de equilíbrio.
-Se está convencido disso… Eu nunca disse nem direi isso, até porque, eventualmente, não concordo com nada do que teorizou. Acho que esteve a provocar-me porque lhe apeteceu fazê-lo e eu compreendo.
-Porque é bonzinho.
-Porque compreendo, foi o que eu disse.
-Porque está habituado a aturar maluquinhos. Porque é experiente.
-Terminamos então.
-O maluquinho terminou o tempo de antena.
-Precisa de falar mais alguma coisa que ache ser relevante?
-Precisa de libertar-se de mais alguma merdinha, o maluquinho…
-Precisa?
-Não precisa, não, Senhor Doutor todo-poderoso, Alteza, Marquesa, Realeza Divina. Não precisa de mais nada o maluquinho que pede a Vossa Senhoria se pode subtrair-se da sua fantástica presença.
-Tenha um bom dia, J.
-O J vai ter, com os maluquinhos, amiguinhos que ouvem coisas dos extra-terrestres e de deuses da Atlântida e têm a cabeça a ferver com coisas que o Demónio lhes enfia pelos ouvidos e pelo cu.
-Quer falar sobre a sala…
-Um bom dia e vá à excelsa merda, Senhor Doutor.
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