memorāre
Sabes bem que perdes a memória. Se há coisa que sabes, por paradoxal que pareça, é isso. Tudo o resto te vai passando ao lado, a tua própria sombra. Nada mais parece restar, então. Ficou-te o piar da coruja, à noite, e o cantar do galo pela manhã. Isso te servirá de recordatória de que o sol desce e sobe num horizonte que já nem é teu.
Sabes bem que perdes a memória. Se há coisa que sabes, por paradoxal que pareça, é isso. Tudo o resto te vai passando ao lado, a tua própria sombra. Nada mais parece restar, então. Ficou-te o piar da coruja, à noite, e o cantar do galo pela manhã. Isso te servirá de recordatória de que o sol desce e sobe num horizonte que já nem é teu.
À tua volta degenera tudo o que os teus sentidos alguma vez alcançaram. Dilui-se, em tudo, o sentido primeiro. Não te reconheces, não reconheces ninguém, não conhecerás ninguém mais. Sabes apenas que perdeste a memória ainda que já não te faça diferença se ainda tens alguma noção do que isso é.
Viveste os teus dias com a angústia de uma morte próxima, o nariz apurado para sentir à distância algum mal difuso pronto a corroer-te o corpo e levar-te daqui numa espiral de dor física e sofrimento que sempre afirmaste como insuperável. Agora, que isto te vai apagando com paciência, não podes sentir o gozo fundo do único prazer que te poderia dar: o seres embalado para a morte, docemente talvez.
3 comentários:
Letras "bem" juntas, Paulo!
Talvez esse personagem seja a (sua)Alma à procura do Dia: luz, muito sol... O Sol do Alentejo maravilhoso de que sentiria falta, se dele se apartasse. A distância fá-lo-ia, simplesmente, recriar esse "Reino Maravilhoso". Então, regressaria não para morrer, mas para recobrar nele as forças de Anteu.
É óptimo que, em plena "middle age", ele tenha em si a força da poesia jovem. Por vezes, esta assoma temporã e dilui-se no Futuro em algo mais concreto, mais telúrico e mais agarrado ao chão. Uma Maria Lionça que, no entanto, não deixa de ser etérea.
Gostei do "eu, baudolino". Para mim, uma revelação!...
Abraço
Isabel
a memória (ou a perda dela)incrívelemente bem trabalhada com as tuas palavras. *
Não imaginas como sinto perto do meu pensamento muitas das palavras que aqui juntaste. Parabéns e um abraço!
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