19/04/11

frios, liberdades, ficções e realidades da memória

Há uma espécie de familiaridade entre o frio e muito da minha memória de mim. Não sei se alguma vez conseguirei compreendê-la, se existe há muito ou é construção recente, se a sei explicar. Posso tentar.
Lembro-me, porque as histórias começarão quase todas por aqui, ou porque agora me apetece que fique escrito assim, de experimentar, sem qualquer desconforto, frios, frios de criança, de adolescente, de tempos não tão remotos assim só porque a vida é mesmo curta. Nada de novo nesta constatação pseudo-qualquer-coisa, apenas um reforço da necessidade de perspectivar a escala, desnecessário talvez.
Lembro-me de estar na praia. A praia era o espaço da liberdade, o tempo de ser hippie antes de ser conservador, hiper-consciente das convenções e o regresso ao não saber o que isso e outras coisas são. É o espaço ao qual volto sempre que o desejo é mais forte. Talvez seja por haver falésias, das quais saltou muito do que sou, todo ou em partes, a qualquer hora, ou por conhecer a palmo as rochas, entrando, na maré baixa, mar adentro, com luz de sol ou de lua. Mar adentro, literalmente. A recompensa estava no poder cantar alto, a coberto do ruído das ondas, no ‘caneiro das safias’, ou o poder passar para a praia do lado, a ‘praia dos calhaus’ e ir até à ‘rocha negra’ fora das horas convencionais de aí estar, ou o poder voltar, depois de uma pequena aventura solitária destas, como se tivesse ido ao único café de então comprar um gelado com o dinheiro das férias quando, de facto, tinha transposto o limiar dos meus medos. No tempo das regras e da obediência, a praia, isolada da vila, a casa na praia, o cheiro à madeira das paredes e à pele salgada e tocada pelo sol no próprio corpo foram uma espécie de utopia que assumo como mais de hoje do que de então. Eram aventuras no não-lugar sem herói, viagens ao centro da minha terra, pedaços de vida trazidos pelo frio, nem sei bem porquê, trazidos por dias como o de hoje, frios, pela manhã fria, depois do calor de ontem, eventualmente com alguma humidade inesperada no ar. Nestes dias quase posso sentir que o caminho para mais um dia de universidade, de professor-burocrata esmagado pela auto-comiseração, no estúpido contornar de meia dúzia de rotundas, evoca os dias do acordar na casa da praia e sair para a rua, o olhar para o céu cinzento e saber que não valia a pena vestir mais do que uns calções de banho e uma blusa por cima da t-shirt porque se estava sempre meio pronto para saltar para a água, ou para caminhar pelo carreiro no alto da falésia, para o lado do pinhal que entretanto ardeu. E era esse o frio da esperança, o das pernas frias como promessa de que, como em tantos dias, naquela Praia do Monte Clérigo, o sol apareceria ou, em alternativa, o corpo não faria concessões e iria para o mar, saltar ingénuo e livre numas ondas geladas, independentemente de tudo e de todos. Era também o frio de ir às compras no Mini vermelho do meu avô, FO-48-93, ou no Ford Cortina dos meus pais, EB-54-52, os mesmos calções, as mesmas pernas frias no cedo da manhã, à espera de que as compras não demorassem e os sete quilómetros até à vila de Aljezur e volta pudessem ser feitos à velocidade do pensamento, do meu. Recordo-me que esse frio está ligado ao ouvir a voz do meu avô a resmungar contra os fascistas que o 25 de Abril tinha derrotado mas que andavam, segundo ele afirmava, ‘encapotados’ em todos os partidos à direita do Partido Comunista, fosse lá isso o que fosse, a esquerda e a direita do meu avô. O Partido Comunista era, para ele, a construção de uma casa onde protestar era legítimo, independentemente da idade e relativamente à qual criou, por força de muitos factores que agora não me apetece explorar, a ideia de um sucedâneo de família ideológica, uma casa dos que compreendiam a luta, fosse lá isso o que fosse. E debitava todos aqueles lugares comuns de um marxismo-leninismo fabril, ideologia compactada. E o frio de esperança andava por todos esses lugares, nessas fronteiras entre a autoridade e a transgressão, a poesia a formar-se e a realidade a mostrar-se, o possível e o impossível, o respeito e uma saudável iconoclastia, mar e terra, céu e sol, lugares comuns da minha ideologia que eu julgava de Verão. Sou hoje muito mais aquele rapaz do que, durante muito tempo, pensei ser, muito mais militante da liberdade do que julgava possível, uma militância pelo direito ao prazer sem custo associado, pelo direito a andar salgado, sem cheirar a gel de banho, pelo direito a dormir descansado com areia na cama, pelo direito comer o que houver, quando puder ser ou apetecer, a andar na praia seja a que horas for, pelo direito a cantar, a gritar palavras de amor ou frustração aos salpicos das ondas, pelo direito à memória que só o ócio traz, pelo direito ao frio, a este frio, ao meu frio nas pernas como promessa do prazer futuro.

1 comentário:

S disse...

sem grande explicação, a não ser a do sentir, soube muito bem ler este texto. muito mesmo.