Onze de Julho de mil novecentos e setenta e oito. Chuva quente, trovoada à solta, céu em revolução, terra em sobressalto. Corrente eléctrica poderosa descreve riscos no escuro, coisa de garras afiadas na noite. Maria dos Anjos sabe que só eles lhe podem valer se a chuva durar mais do que uma missa vespertina do padre Diocleciano na capela de S. José. O buraco no telhado não perdoa, nem a falta de dinheiro para chamar o pedreiro. A dignidade perdoa ainda menos. Desde que o pedreiro lhe confirmou que o orçamento do arranjo era quase um conto de reis ou meia hora a resfolgar pelo chão, juntava dinheiro ou arranjava maneira de conter a água.
Parou a chuva, a terra húmida e quente. Saíu de casa e olhou o campo em frente. Parecia que fumegava, a terra. Deu mais uns passos, dois ou três, e ainda havia relâmpagos por perto. Raio de noite, aquela, com as trovoadas no campo raso e todo aquele céu por cima dela e do filho que lhe nasceu dois meses antes do pai do filho se ter ido embora. As mãos caídas, sentiu restos de chuva atrasada a molhar-lhe o cabelo. Deixou cair a cabeça para trás, lentamente, e ficou assim um tempo.
Acordou no dia seguinte, o sol já alto, tudo como dantes, o filho a chorar-lhe ao lado uma lamúria. As roupas rasgadas, as plantas dos pés feridas, as mãos arranhadas com um molho de cardos, caído ali ao lado em desalinho. Não se lembrava de nada. Doeu-lhe o corpo por mais três dias e a alma por outros tantos. Cresceu o filho mais depressa do que todos os outros da freguesia, tomado de um adubo com o aroma acre do mistério. Dizia-se, porque sempre nestas coisas se dirá algo, que havia ali coisa, que já a mãe era igual e que o homem tinha desaparecido porque ela o matara. Nós, que sabemos tudo sobre ela, afiançamos que nada de extraordinário aconteceu. Nem um raio lhe mudou a vida. Vida de um raio.
Este texto tem a mesma origem do anterior. Ambos faziam parte de umas coisas a que chamei de micro-narrativas bizarras. Bizarria em dose moderada, narrativas fraquinhas. Ficam, ainda assim, para um ou outro par de olhos que passe aqui. Sempre uma boa conta, um ou dois pares de olhos.
5 comentários:
o meu par de olhos por aqui passou e gostou desta trilogia bizarria.
:)
Existem sempre pares de olhos silenciosos. Serão certamente mais do que um ou dois. ;)
(loira)
quando é que publica em livro estas bizarrias. Isto é literatura.
csd
Grandes prosas! Sempre!
Abraço amigo!
Antes de mais agradeço o comentário.
Lendo este seu texto tenho a sensação de que sou narradora num filme português ou teatro qualquer. Gostei muito.
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