Ernâni tinha três olhos, dizia-se. Tinha uma mancha no meio da testa, o Ernâni. Naquela noite, matutou à beira do lume, sentado no banquinho de madeira tapada pela gordura do fumo. Era velho, o fumo, mais velho que as duas tias solteironas. Ernâni tinha dois olhos, uma mancha estranha, como se de um olho da sua mente para o exterior se tratasse. E tinha um nome estranho, mais estranho que as duas tias solteironas que o guardavam. Torres em tabuleiro de xadrez, as manas Luzeiro, as tias, cediam-lhe o centro quando caminhavam, solenes na rua. Ir e vir de missa, ir e vir solteiro a ver o padre novo, com músculos de varão do campo. Naquela noite, matutou Ernâni, tanto quanto a noite o matutou a ele. No dia seguinte foi-se pelo coelho, no local em que o avistara, puxou-o para fora da toca, matou-o com uma pancada seca. Chegou ao adro da igreja e ali, à vista de todos os que não tinham manchas na testa nem olhos da mente a fazer de manhcha na testa, empapou-o em petróleo e puxou-lhe fogo. Todos passaram a saber que o Ernâni tinha um pacto com o Mal. Sabiam-no tanto como conheciam em profundidade a sua mancha na testa. Nesse dia, Ernâni tinha mais do que um nome estranho, três olhos na cara e duas tias a esbanjar mofo, roupas ridículas e cheiro a velha sentada em cadeira de palha: tinha medo de si próprio. Passou a fazer a barba às escuras, e sem espelho. Passou a dizer-se que via no escuro. Cresciam os poderes, matutava Ernâni. Ainda hoje matuta Ernâni, no escuro matuta.
Este texto estava alojado em outro blog, cuja autora principal e anfitriã resolveu, não sei se dogmaticamente, votar ao abandono, digo eu, não isento de eventual juízo precipitado. Fica aqui agora, para ser visto por uma meia dúzia de olhos, aqueles que, em média passam por aqui. É uma boa conta.
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