28/04/12

curva à direita, semáforo intermitente, domingos à noite e folhas sobre mesa

Diariamente passo por ali, a curva à direita, o semáforo intermitente, as duas igrejas frente a frente e, à esquerda, os portões do cemitério, com o muro, fronteira com a empresa dos autocarros, uns metros mais à frente. Gente com malas, estudantes, como dantes os tropas à saída do comboio. Mais gente às sextas que nos outros dias, tudo previsível, pelo carreiro em terra batida junto ao muro do cemitério, mais seguro que o percurso paralelo carregado de carros estacionados sem espaço para passos de pessoas. Ao domingo seria natural que passasse mais gente também, em direcção ao centro da cidade. Detesto os domingos e nunca me apetece pensar o que se passa nos domingos à medida que a noite se aproxima. Invariavelmente pensaria em casais de velhos sentados em cadeiras de pau e buinho, velhas e direitas demais para costas vergadas pela gravidade, metáfora ostensiva de corpo puxado para a terra. Olhariam para a televisão, num consenso velho relativo ao programa a seguir. A luz seria fraca, emitida do centro do tecto da sala adjacente à pequena cozinha. Haveria no ar um resto da canja do jantar do dia, um muito ligeiro aroma a ranço do toucinho, colocado ao ar no prato branco de faiança, em cima da bancada de mármore, protegido com um pano. Teriam uma manta meio húmida sobre os joelhos, talvez simetricamente partilhada se se dessem bem, se a vida não tivesse sido toda como um domingo à noite, tal como eu os vejo, aos domingos. Por tudo isto, não penso em domingos à noite e faço disso um princípio que posso quebrar se me apetecer porque não devo coerência, nem a nada, nem a ninguém.

...
Hoje seria eu isto: mesa larga, em pinho já um pouco escurecido, mais pelo tempo que por eventual verniz. Sobre a mesa, folhas e folhas, predominantemente brancas, predominantemente em formato A4, umas seriam poemas, outras contas por pagar, recibos de bilhetes de avião, declarações de amor, ameaças anónimas e assinadas, cartas recebidas, histórias oferecidas por amigos, certidões de coisas, registos, óbitos, desenhos oferecidos por crianças, como declarações de amor. Hoje seria incapaz de os arrumar, aos papéis, sei apenas que estão lá, olho-os e sei que sou aquilo tudo. Previsível retrato compósito desmontável e de pacotilha. Hoje seria eu isto. Amanhã será domingo e, no dia seguinte, passarei por ali, a curva à direita, o semáforo intermitente, as duas igrejas e, à esquerda, os portões do cemitério ladeados de muro branco, em formato A4, à escala dos meus dias. 

(aos meus amigos x. e p., porque me enviaram um postal, me ofereceram um conto e me afirmaram que se deve celebrar a amizade, mesmo aquela que é só feita de troca de palavras. ajuda a prencher o lado caloroso da mesa e a esquecer as contas, todas as contas, as pagas e, especialmente, as por pagar.)

3 comentários:

R. disse...

Belíssima partilha de imagens e retratos. De facto, há nos domingos qualquer coisa de penosamente nostálgico, como se todos os domingos evocassem uma qualquer perda ou a iminência da sua ocorrência.
Concordo que somos os papéis e as tarefas, a madeira e os gestos dos outros (reflexo das nossas próprias acções). Já a celebração da amizade é um imperativo. Não uma obrigatoriedade, mas um ditame impreterível, como o que se impõe na comemoração dos acontecimentos verdadeiramente assinaláveis.

Obrigada pela apresentação. Foi um prazer conhecê-lo :)

Ana Tapadas disse...

Excelente o ritmo da escrita e a construção narrativa. Parabéns.

bjs

rtp disse...

Caro Baudolino,
Foi preciso o aniversário do Filipe Lamas para eu vir ao T&L e descobrir alguns comentários a aguardar moderação e ver o seu incentivo à maior actividade do blog e a sua pergunta sobre o que se passava comigo.
Obrigada pela simpatia que a pergunta encerra!
Nos últimos tempos tenho andado distante da Blogosfera. Nem a este seu encantador espaço (um dos poucos em que era leitora assídua) tenho vindo! Shame on me! É uma época de pousio blogosférico.
Não pude deixar de vir espreitar o seu blog de imediato!
E, na verdade, há, de facto, coisas que nunca mudam: as suas palavras são sempre muito belas e significativas.
Um abraço,
RTP