15/04/12


Palavras que não corresponderão à verdade, no sentido factual da coisa: “No dia em que o meu avô morreu, o meu pai disse-me, com ar grave, que chegará um dia em que todos nos lembraremos de tudo, a memória de tudo será parte de nós, que seremos apenas memória e nada mais fará sentido. Disse-me uma série de coisas mais, todas elas mais ou menos graves, das quais julgo não me lembrar. Para ele, isso terá servido de ajuda no pensar dos seus dias sem o pai. A mim, nada do que disse me ajudou naquele dia e hoje, dia de acompanhar-lhe o corpo à terra não me concebo sentir como suficiente o lembrar-me dele. A memória foge-me mais do que desejaria e não cumpre essa função de manter vivo. Nesse dia, que o meu pai me garantiu vir a existir, receio ficar sozinho por não me ver sem carne nem osso.”
Insisto no facto de poder ter palavras a sair da minha boca ou postas em papel por um fio de tinta ou carvão que queira tomar conta de mim, mas tudo com carne e osso, sem qualquer alternativa. Esqueço-me, muitas vezes, de que já tinha superado esta ou aquela dificuldade, negrume antigo já tratado e acordo cinzento, desesperado, nessa repetição de filme visto. Ocorre-me que estas experiências não me deverão preocupar. Não será tanto a memória que falta mas mais a sensação de que a resolução disto ou daquilo não foi definitiva ou foi apenas aparente. Sinto, em relação a essas coisas, o mesmo que quando, errante pelas vielas de um cemitério, encontro paz nas campas rasas e estranheza perante os jazigos. O jazigo representa essa recusa da morte, o não querer embarcar nessa viagem de povo, quando se refere a algo que se encerra ou resolve como ‘morto e enterrado’. Não decidem os mortos negar-se a ficar debaixo da terra. Talvez alguns formulem esse desejo em vida e tenham os vivos de carregar essa recusa de ficar com sete palmos de terra em cima. Mas os mortos não decidem, vincularam os vivos a essa decisão, a dos últimos desejos e, por algo semelhante a respeito, cumprem-se este e aquele desígnios. Assim se fica, a alma encomendada e já ausente, com bilhete de ida para a eternidade e o corpo impedido desse mergulho na terra, como se não bastasse a parafernália de madeiras e folhos de cetim a mediar o contacto entre a nossa pele e a do pó ao qual se diz que voltamos.

5 comentários:

x disse...

é sempre bom passar por aqui e ler as tuas palavras, os textos cheios de riqueza. particularmente quando nos dizem tanto, por sentir que partilhamas as palavras e os sentimentos. somos todos pó.

os meus pêsames pela tua perda.

P disse...

é bom ouvir palavras de estímulo ainda que seja apenas por algo que nem sabemos bem como se escreveu.

obrigado. De facto, tudo foi, no primeiro parágrafo, ficcionado no sentido de não correspondente com a realidade (onde isto do real e ficcional e das respectivas fronteiras nos levaria...); não deixa de estar profundamente radicado em perda minha, retrospectiva e projectiva. Agora que penso bem, aquele dos meus avós que conheci, está morto, mas não enterrado... Coisas da vida, com morte dentro...
um abraço a ambos

roni silva disse...

As palavras que nos deixaste conduzem-nos às mais profundas raízes do turbilhão de ideias e sentimentos que se nos afloram ,quando, ante a crueza do silêncio mortal e num deambular solitário, tudo se nos assemelha a um trajecto que se tornou irrealidade .

P disse...

roni, o Baudolino mentia com quantos dentes tinha... Logo, tudo pode não passar deste jogo. Ou não...

roni silva disse...
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