06/10/12

lugares comuns de proto-'road movie'. again? elementary, dear Dr.Sigmund?

Avançavam no carro. A estrada parecia alongar-se à medida do desejo. Talvez tivessem já passado por uma ou outra barreira policial, talvez mesmo. Uma das palavras preferidas de ambos, o talvez. 'Talvez' e 'terra batida', palavras que gostavam de integrar nas suas fantasias comuns. Até ao final da viagem, talvez acrescentassem mais uma ou outra a esta restrita lista. Talvez o fizessem, sem garantias. A própria viagem não parecia ter destino à vista ou objectivo claro, a não ser o de deixar à solta o desejo de fazer daqueles dias um road trip, sem América nem crime que justificasse fuga. O pai ainda lhe perguntou para que precisava do carro e porque não sabia o dia do regresso. Ele sabia que o pai não lhe exigiria respostas. Sorriu. Obteve de volta um sorriso e um 'não faças asneiras, Dário'. 'Ela também vai?' 'Talvez'. Sorriso. Ela ia. 'Não façam asneiras'. Sorriso. 'Telefonas?' 'Talvez.'

[Impunha-se aqui, narrativa curta, rasteira, pretensiosa, previsível e cabotina, com evocação de pseudo-cinema de adolescencia libertária, que houvesse um desfecho qualquer, um regresso com um filho nos braços, uma asneira que os colocasse na rota de uma fuga trágica, um nunca mais voltar para que o mistério trabalhasse até se cansar, um avanço no tempo da história a mostrar-nos um amanhã que seria um hoje, uma projecção de que talvez o desejo trazido à terra seja algo de gratificante, libertador ou, pelo contrário, o poço no qual germina a erva de uma qualquer desgraça em lume brando. Talvez fosse honesto que tomasse uma opção capaz de rematar de vez um parágrafo sem ambição. Talvez. Apetece-me especular]:

Falaram sobre o medo de morrer sem que tivessem visto o melhor da vida, medo de adolescente e de adulto que vira as costas ao imponderável convencido de que ser crescido é vestir os sonhos com o fato e a gravata da dignidade. Enquanto o carro avançava e ele lhe tocou com a mão nos joelhos, juraram que continuariam a andar mesmo que a noite estivesse fria e os sapatos gastos. Ela disse-lhe que tinha sede e pararam para beber e talvez ainda hoje bebam.  Acrescentaram 'sede' à lista de palavras favoritas para narrativas fantasiosas. Perceberam que o dia se segue à noite e a noite ao dia, algo com sabor a primeira vez, a descoberta, algo como perceber que a sede se mata com água e o desejo com calor e terra batida, se tiver de ser, porque os sabores e os aromas, o tecto e os murmúrios se vestem de forma diferente com o dia e a noite.
The end
[who cares about box office reports? go ahead, make my day!]

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