17/12/12

natureza morta nº 1: estante à minha frente

Livros em prateleiras, coisa banal, assunto de conversa sem catálogo por ser de pouca monta a colecção. Olho-os.
Biografias, guias de viagem dispostos horizontalmente: Polónia, Berlim, Estocolmo, Istambul, Holanda. Topo da estante.
Em sentido descendente, duas prateleiras de livros carregados de coisas metodologicamente correctas, sociologicamente relevantes, pedagogicamente fulcrais, rasto profissional de lesma em parede branca a fugir de chão molhado pela chuva.
Mais duas prateleiras do mesmo calibre, arma de fogo para atirador furtivo. Pelo meio, teorias da literatura e volumes quejandos, folhas a teorizar estética, arte, letras juntas de modo que a realidade insultará por ser combinação indutora de falácias. Pergunta-se lombada de livrinho com o nome de Italo Calvino 'Why read the classics?' E pergunto-me eu por que razão se lê e se quer ler. Pergunto-me que coisa é esta do desejo de devorar palavras escusas, triunfantes, erros anónimos da normalidade fina e exacta de se ser número e pessoa sujeita aos mercados temperamentais da pós-modernidade.
No fundo, já rente ao chão, dicionários de latim, português, alemão, inglês, francês, espanhol e três gramáticas: uma de espanhol, que nunca uso, uma de francês que já gastei e uma de português que haveria de ser constituição fundadora de uma pátrias feita minha, idéia que rejeito e que coloco numa anacrónica e desapiedada roda para conceitos órfãos. Não quero que seja a língua portuguesa a pátria de ninguém. Não me quero português preso pela língua. Exijo-me apátrida, expatriado, qualquer coisa que me dê rumo à revolução de ser eu. Não quero ler os clássicos, reivindico o direito a ler tudo o que for anarquia de mundos a sangrar pátrias, folhas que amareleceram antes do tempo, suicídio de livros heróicos carregados de obediências. Ao lado direito, na prateleira central, uma caixa de cigarrilhas que alguém me trouxe do Brasil e que queimo, de vez em quando, sempre com gosto, em pose que classificaria como sendo coisa de pseudo-intelectual. Vibra o mundo só de haver fogo ao pé de livros. 
Tudo o que pode via a ser vício, far-se-á de vez em quando. Isto estaria escrito em um milhão de livros colocados meticulosamente em prateleiras que me recuso a ter e, muito menos, a ler. Seria assunto de conversa catalogada com minúcia e outras propriedades dessa natureza, seiva envenenada de detalhe programado para gozo supremo dos que amam a previsibilidade e por ela dariam a vida sem perceber que a entregaram já.
Guardo uma prateleira para livros sobre a desobediência civil, a desobediência geral e específica, o desejo absoluto de não se incendiar a vida só de vez em quando, mas sempre que haja vontade de o fazer. 
Amanhã é dia de tenacidade incondicional, coisa que se aprende, por exemplo, com o vento. Talvez possa dia de arrogância também. Não decidi ainda nos braços de que heresia me lançarei amanhã. Se tivesse que decidir já, optaria pela heresia de estar vivo sem ter medo da dimensão do meu desejo. Talvez acabe por ser apenas um dia de reler clássicos, de aplacar corações iconoclastas, nunca se sabe. Falaremos então, se for caso disso e estivermos todos vivos, amanhã, mais ao final do dia.

1 comentário:

R. disse...

Heresia será viver com medo e viver sem (re)ler.

Votos de um novo ano feliz, vibrante e preenchido por (boas) razões para conversas inesgotáveis.