12/11/14

CSTM1

Um dia olhei-te, de joelhos na cadeira, posição de possível conforto para realizar deveres da escola. Cadeiras e mesa de cozinha, revestidas por fórmica azul, padrão a simular azulejos com cenas de quase gente a viver um quotidiano plano.Talvez eu tivesse ainda a roupa que trazia da escola, com o cheiro da escola, com um certo cheiro a suor em pano branco da bata. Agora que penso, não teria eu a bata vestida. Tivesse eu a roupa favorita da altura e vestiria uma blusa de malha, sem mangas, azul escura. O resto seria irrelevante, essa blusa bastaria. Tudo se aceita neste exercício, até à imagem da tua entrada.
Entraste.
A sombra, no pequeno espaço junto à porta da rua, deixava o espaço dividido entre o muito escuro e uma gradação de claridade esverdeada. Entraste e isso equivalia a que ainda não tinhas morrido, não te tinhas suicidado, como tantas vezes anunciaste à laia de refrão matinal, lema de vida. Olhei-te como se existisses, mas não tenho a certeza de teres sido o que quer que fosse. Olho-te agora, nesse momento distante, como se fosses uma espécie de figura em cartão, daquelas que existem hoje a replicar os atores, em tamanho real, à entrada dos cinemas, bidimendional, sem espessura, sem profundidade, sem aquilo que se tem de ter para se ser, algures entre o escuro e o esverdeado do espaço onde paraste e me fitaste, vazia. Fica-se assim, talvez, quando ficam as promessas que fazemos por cumprir. Tu ficaste. Mesmo que a promessa seja um reiterado anúncio de morte com hora e sítio marcado, se não a cumpres, ela cumpre-se sozinha.

4 comentários:

S disse...

E que saudades que eu tinha de vir aqui.
:)

P disse...

Obrigado. Fazes bem em aparecer.

Graça Pires disse...

Um texto muito belo. Um amor que foi, que é ou que será...
Beijo.

P disse...

Obrigado, Graça.