Não me lembro de quando morreu o meu tio Pepe.
O meu tio Pepe tinha, no seu quintal estreito, ao qual se acedia pela cozinha, julgo que ao fundo da casa, um perdigão. Estava dentro de uma gaiola e, por vezes, tenho a impressão de que o ouvi falar, ao perdigão. Ao meu tio Pepe, tenho a certeza de o ter ouvido. Falava muito comigo, mais do que eu com ele.
O meu tio Pepe era casado com a minha tia Prudência, irmã da minha avó Casimira e de mais uma dezena de irmãos. Teria agora de contá-los para ter a certeza de quantos foram, entre os que morreram em pequenos, os que viveram até eu os ter conhecido, e não me apetece fazer isso agora porque me apetece listar factos e coisas do género sobre o meu tio Pepe. É um estimável património de tios que julgo não estimar o suficiente, não ficando, contudo, a alimentar culpas por isso. Faria agora um manifesto sobre o facto de não ter de ser a vida, a minha, o capítulo esquecido de Crime e Castigo. Não o faço apenas porque tenho de continuar, porque assinaria o manifesto mesmo sem o escrever, porque a culpa, sobretudo a que é mal parida, corrói até ao osso.
O meu tio Pepe tinha uns óculos com lentes verdes, o cabelo penteado para trás, escrupulosamente. Tinha levado um tiro, alegadamente na Guerra de Marrocos, na qual, também alegadamente, tinham participado os meus tios e cunhados dele, Alonso e Felipe.
O uso de 'alegadamente' deve-se ao facto de poder eu falhar na componente factual do relato e não quero que comece a emergir a suspeita de falsidade em alguém que não eu próprio.
O tiro na perna obrigava-o a coxear. Com o tempo, deixei de reparar que ele tinha de fazer aquele movimento circular com a perna. Hoje não sei se seria a perna esquerda ou direita. Assumiria que era a esquerda, pela imagem que agora me ocorre dele a descer a rua. Juraria que trazia uma bengala preta, lacada.
O uso de 'alegadamente' deve-se ao facto de poder eu falhar na componente factual do relato e não quero que comece a emergir a suspeita de falsidade em alguém que não eu próprio.
O tiro na perna obrigava-o a coxear. Com o tempo, deixei de reparar que ele tinha de fazer aquele movimento circular com a perna. Hoje não sei se seria a perna esquerda ou direita. Assumiria que era a esquerda, pela imagem que agora me ocorre dele a descer a rua. Juraria que trazia uma bengala preta, lacada.
O meu tio Pepe dava-me sempre pesetas na hora de regressar a Portugal. Talvez mil, mil e duzentas pesetas, umas vezes mais, outras menos.
O meu tio Pepe expulsou um miúdo da minha idade de um carrossel, nas festas de Encinasola, apenas porque ele me disse, de forma insidiosa 'Sai daqui Português!'. Ser Português ou Espanhol nunca foi para mim, nem para o meu tio Pepe, algo em que se pensasse como sendo traço distintivo de qualquer um.
O meu tio Pepe dava beijos barulhentos aos sobrinhos na hora da chegada e na hora da partida.
O meu tio Pepe acabou por ser uma espécie de planeta despromovido sem critério do meu sistema familiar e eu recupero-o agora em grande pompa pessoal. Recuperarei mais destes corpos celestes sempre que me apetecer, sem disso dar justificações, se as não quiser dar.
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