07/02/17

Coisas 79,3% verdadeiras de que me lembro

O meu tio Gumersindo era, até há pouco tempo, o único irmão da minha avó materna vivo. Muitos foram, em momentos distintos, desaparecendo. Algumas dessas notícias foram recebidas pela minha avó na minha presença. A notícia da morte do tio Cândido, o tio que ficara paraplégico ao dar uma cambalhota na cama, aos quatro anos, foi recebida na casa da praia do Monte Clérigo, trazida por outro tio, casado com tia-avó paterna, de motorizada. Um breve parêntesis para destacar que Frederico Furtado Júnior era um homem bom, alma da farmácia da terra, pescador de gloriosos sargos, amador da guitarra portuguesa, possuidor de inúmeras coleções de banda desenhada. A morte do tio Cândido, ou a notícia dela, cheira, nas minhas memórias, a gás butano, àquele cheiro de borracha e redutor velhos, metal meio oxidado revestido por algum resíduo de gordura. Estaríamos então na cozinha e, pela porta de trás, infiltrou-se a notícia, declarou-se, fez-se explosão em lamentos muitos, todos da minha avó, os outros a tentar que ela recuperasse os sentidos. Eu estaria por ali, a ver e a ouvir, a pensar em como os próximos dias seriam meio cinzentos e em como a morte do tio Cândido me roubaria uns dias de praia por ter que se ir a funerais e fazer viagens para Espanha, o que, por razões que desconheço, não veio a suceder. Estaria eu no canto com aroma a botija de gás, ali sentado numa pequena cadeira com fundo de buinho. Estaria eu a tentar desfazer pacientemente o fundo da cadeira, como de costume.
Depois da morte da minha avó, faleceram os meus tios Prudencia, Angeles e Gumersindo. Não tenho a certeza disto mas não terá sido muito diferente. Não vi, portanto, a minha avó a reagir à notícia que anunciava as suas perdas. Para a minha avó, Prudência era uma amiga tranquila e bonacheirona, Angeles, Angelita, a rival, talvez por ser a mais próxima, tanto que as idades se lhes confundiam e Gumersindo o menino, o mais novo, a cria mais frágil da ninhada, filho de todas as irmãs, na cabeça de todas as irmãs. Gumersindo foi o menino que, na Guerra civil, teria sido escondido pela irmã mais velha, Natividad, numa salgadeira, por entre as peças de carne e toucinho, para que o não levassem. Era Natividad dada a salvamentos heróicos, segundo rezam as artesanais lendas caseiras, tendo salvo de afogamento quase certo num poço o irmão, Gumersindo. Porque todos seremos dados a algo, Gumersindo seria, aparentemente, dado a ser salvo heroicamente.
Gumersindo salvou a continuidade intergeracional da família e não fui ao seu funeral porque tive um inadiável compromisso profissional. Um inadiável compromisso profissional, no dia em que desce à terra o último dos nossos tios de quem se guarda memória de conforto, é uma prova de responsabilidade ou, como me parece quando nisto me vejo ao espelho, uma ostensiva falta de coragem para mandar aquilo que não importa para nada à merda. 

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