18/04/17

Coisas 49% verdadeiras de que me lembro

As imagens têm uma componente a cores e uma outra em escala de cinzentos. A esta última parece poder ajustar-se, ocasionalmente, o verde muito escuro, crescente em imperceptível gradação no espaço-instante em que a sombra se instale. Tudo parece ser visível apenas pela porta que, da marquise-quase-corredor, envidraçada à esquerda, dá acesso à cozinha. A cena ter-se-ia passado aí, na cozinha, por incapacidade minha para a recriar em outro lugar. As descrições confeccionadas pela minha avó materna, bem como as narrativas por ela tecidas, uma e outra vez, a partir de cenas protagonizadas pelos seus sogros, foram sempre por mim visualizadas como tendo ocorrido ali, naquela cozinha, a da minha avó, mas vistas de fora, pela porta, ou melhor, pela meia porta. A sobreposição dos espaços não seria completa por, em quadros passados, o padrão algo hipnótico dos mosaicos permanecer oculto. O chão, os seus padrões geométricos a evocar abismos e plataformas guardiãs de infinitos,  parecia desvanecer-se nessas sequências registadas em plano contra-picado, de profundidade reduzida, como se tudo fosse presenciado a uma altura ligeiramente inferior à dos meus olhos. 
Sempre, entre nós, se fez intensa a experiência da fronteira, essa linha de pó trilhada por contrabandistas, que nunca vi, guardas fiscais, de quem desconfiei, e de carabineiros que, com o tempo, aprendi a temer menos. Esse era o espaço seminal, a separar Portugal de Espanha, de onde se acedia ao mundo da minha avó, a estrangeira. Ventos e casamentos, que sopram de onde se sabe que não vem boa coisa, transmutam-se diligentemente em searas de outras fronteiras, espessas, difusas, perversas. 

O que vi: "O meu bisavô Manuel Bento, figura bondosa, interage fisicamente com a sua esposa, e minha bisavó, Delmira, figura não tão bondosa assim, de quem eu recebi colo com o dom de me adormecer, motivo de enlevo intergeracional, para os meus pais, e de suspeitas de encantamento duvidoso, para a minha avó. Tudo isto se faz chama a florescer, emanação de fronteira. Provoca então Manuel a queda de Delmira de cima de uma cadeira, que estaria, por seu turno, sobre uma mesa. Estaria ela nesse lugar a tentar limpar algo a que, de outra forma, não poderia aceder. Não se faz luz sobre a agenda suspeita que teria levado a tal empresa elevatória, aparentemente injustificada. Manuel, sempre bondoso, teria entrado em casa etilizado e teria empurrado a cadeira para que, propositadamente, ela, raramente bondosa, dali se precipitasse. Ele, ou melhor, o álcool que nele agia, ludibriando a sua responsabilidade em quaisquer actos, teria assim permitido que alguma justiça fosse feita, por se ver compensado o esposo de queixas diversas e integralmente validáveis por qualquer um que por ali andasse, como por exemplo a minha avó. A saber: a secura da mulher; a sua acrimónia para com o pobre homem que brincava pueril, doce e cumplicemente com a neta; a inflexibilidade na hora de ralhar com ele por, alegadamente, consumir com bonomia açúcar, directamente do açucareiro, igualmente na companhia da neta; a capacidade para induzir no filho o desejo de encontrar a sua própria mulher sobre uma cadeira colocada em cima de uma mesa, a limpar algo, e o desejo maior ainda de, entrando ele, eventualmente etilizado, ilibado portanto de responsabilidade, e estando ela a limpar algo, como boa esposa que era, derrubar a minha pobre avó; o silêncio ferino usado, já em viúva, para induzir no filho a impressão de que a sua mãe estivera a sofrer em silêncio no seu cativeiro, devendo ser libertada por actos ou palavras das as forças da opressão doméstica, do seu exílio em horário de expediente. Estas duas últimas dimensões não serão isentas de redundância mas tudo se justifica na abnegada peleja pela justiça."

Assim se traçam as linhas nos mapas, assim se cresce a saber por onde ir, sempre no respeito àquilo que se oculta na linha curva que se fecha, fazendo-se caminho, e no temor daquilo que se aprende a ver no lado oculto dos olhos, em plano contra-picado, o mais fechado possível, para evitar dispersão. Assim é a realidade a fazer-se de tecidos filtrados pela voz do amor e da doçura de quem nos quer e, por isso, a pôr-nos em guarda sobre o veneno ardiloso de quem não nos quer. Assim se faz contrabando de sombra, se fiscaliza a luz e se dá seriedade à vida, cobrindo-a com um ridículo chapéu de carabineiro, enquanto se espera pela conta dos direitos alfandegários pagos ou devidos por tudo o que se traficou ou se venha a traficar. 

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