17/04/17

Excertos de 'Cartas Exiladas' 1,1

Donostia. 22 de Janeiro de 1984


Ramiro,


não percebo que coisa é essa de me pedires um elogio (deduzo que fúnebre...). És um tipo cansativo, um bom amigo mas cansativo, sim. Não vejo contudo porque iria isso constar de um qualquer elogio, como me pedes. E és cansativo porque queres controlar tudo, até a tua partida para outro munco qualquer ou para debaixo da terra. Farei, se partir antes de ti, os elogios que quiser, a olhar metaforicamente para o teu caixão, seja lá em que circunstância for. Não devo fazer a viagem real até vós, nessa ocasião. Para mais, palpita-me que os teu filhos, com toda a propriedade, quererão uma daquelas cerimónias religiosas muito cheias de cânticos e de orações, flores e fanfarras, com os mestres das coisas deles a oficiar e não teria eu lugar aí. nem quereria ter, como sabes. Se o teu pedido era literal, e apeteceu-me entendê-lo assim, esquece isso. E, se queres saber, não vou falar das coisas de que me falaste, da tua profunda e constante melancolia, desse quase não estares neste mundo, dos muros brancos e negros que transpuseste ou não. Não foste apenas uma espécie de eremita: as pessoas perderam a paciência para te ver, para interagir contigo, para aceitar as tuas divagações, as alterações de humor... Eu aceitei talvez porque fui ficando longe fisicamente e as distâncias tornam as coisas más suportáveis e as boas desejáveis, como dizia o meu tio Júlio, de quem te lembrarás. O eremita fui eu, afinal. Ficaste tu, as nossas cartas, a lembrar-me parte do que fui, enquanto aí estive nesse país de merda, antes de me julgarem por ser comunista e por ser fascista e por ser uma série vergonhosa de coisas que nunca fui. E fugi para onde não lembra o demónio e, sobretudo, para onde ninguém me pergunta como chegámos, porque chegámos, porque não recebemos visitas, de onde me vem o dinheiro, porque só ando de bicicleta e, no carro, quem conduz é a Helena, porque leio poesia na esplanada como um turista e não me vou embora no final da época balnear, porque converso com os meus dois vizinhos, José e Luis, como se os conhecesse de toda a vida, longamente, porque me sinto protegido num país que me ensinaram a detestar desde pequeno, terra de gente feroz. Farias aqui longos poemas sem esperança, porque és assim. Eu vou tentando conquistar a redenção a golpes de palavra, escrevendo pequenos contos felizes, com finais felizes. Como calculas, acho-os impublicáveis... Começo a pensar que os julgo impublicáveis porque são felizes e têm finais felizes... Queres que te envie um deles? Posso enviar-te o menos feliz, se isso te anima....
Espero resposta e não despedidas! Ou então, arranja uns trocos e vem até cá, um exilado a visitar o outro. Às tantas, isto pode ter ares de lugar onde tudo, como eu próprio, se esvai e se oculta. Enfim, acabemos com os nossos narcisistas lamentos...

Até breve!
Um forte abraço

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