16/05/17

Excertos de 'Cartas Exiladas' 4.0

16.05.2017

L,

tenho recebido a tua voz amiga como uma rara oportunidade para diálogo, nestes tempos recentes em que temos tido oportunidade para mais do que pôr uma qualquer escrita em dia. Porque as teias com que nos tecemos e nos vamos tecendo uns nos outros serão assim mesmo, é mais comum que os outros sejam um espelho do que uma janela ou uma porta abertas e, logo, é mais usual que nos vejamos envolvidos em monólogos travestidos de outras práticas conversacionais. Nada de perturbador nisto, será assim. Seguem estas palavras, na volta do correio, sem filtro.
Na tomada de consciência de que, a cada segundo, a cada dia, somos o mesmo e o diferente disso, a dúvida sobre o que sou, sentado sobre aquilo que tenho sido, é tranquilizadora. Tenho perdido em certezas, tenho ganho em amplitude; perdi vigor em convicções, ganhei algo em humildade (embora esta afirmação não seja destituída de soberba). Senso comum, evidências tornadas inefáveis revelação, isso de sermos outro e o mesmo... Pode ser. Mas durmo melhor, depois de não dormir anos a fio. Tantos, que talvez me tenha esquecido do que seria dormir uma noite de sono. Ainda acordo vinte vezes por noite, só por acordar, só para ver se ainda cá estou, talvez, como se quisesse controlar a rotação e a translação da terra para não acordar perdido em órbita irreversível. Ou então não é nada disto e ando iludido pelo facto de dormir melhor, como se o universo e, narcisicamente, eu próprio, tivesse erigido algo como um sono razoável à condição de grande demiurgo.  
Não me esqueci de Deus, nisto tudo. Não poderia, nem sequer faz sentido assumir uma atitude de combate, de militância contra o pai, o filho, ou o espírito santo. Contra outras coisas, talvez, mas há outras lutas prioritárias, como estar vivo e contente por isso; não se justifica andar a zurzir comportamentos discutíveis como quem combate o bom combate. Perante Deus, a existir, não nos restaria muito mais que tentar adivinhar com maior ou menor afinação os seus pensamentos, os seus desígnios. Acertaríamos pouco nesse processo de prever resultados a partir do que se conta que foi. E não viria disso mal ao mundo. Na economia desta narrativa, estaríamos apenas a acrescentar mais uma sequência e isso poderia ser bom. Seria bom que a boa nova fosse actualizada a cada dia. Seríamos os mesmos, sendo outros, melhores. E seria bom que, em tempos frios, eu me sentisse aquecido pela ligação ao divino. Seja a história o que for, faço parte dela e isso, para já chegará e não me perturba. Perdendo em conforto do alto, terei ganho alguma paz por me aceitar melhor. Terei perdido na troca, se o foi. Esta formulação em pares que parecem opositivos pode resultar pouco coerente, ou terreno fértil para que se encontrem fendas no discurso, lapsos freudianos em discurso moldado por cartilhas psicanalíticas mal assimiladas. Talvez. Mas durmo melhor. Pelo menos estou convencido disso. Sobretudo, não me apetece dormir para sempre, fosse isso o que fosse. E a procura da coerência não tem de chegar àquilo que mais se parece com ela. Numa péssima e abusiva metáfora, não parece haver coerência numa obra cubista. Ainda assim, não questiono que a sua existência, o podermos interagir com ela, nos faz mais humanos (foi fraco, eu avisei).
Nisto de sermos um, sendo o mesmo de sempre e outro novo a cada dia, nunca saberemos com certeza como se fazem e desfazem os nós que somos. Por isso, não há que esperar por regressos, porque não houve partidas; nem saímos, nem regressamos. Estamos vivos e isso é bom. Às vezes terá de chegar como projecto, a caminho de uma felicidade qualquer iluminada por realidades simples e pouco palpáveis nas quais acredito sem dificuldade, como aqueles que amo, o amor que me devolvem.  Adivinhemos então, façamos prognósticos, querido amigo, e falemos sobre eles, sobre os equívocos que deles emergem, ainda que pelo puro prazer de discutirmos a sua validade, as suas probabilidades de concretização, o aroma que têm, como soam e que com que cores se pintam. E podemos beber um copo ou tratar de um petisco qualquer.

Um abraço e até breve. (Posso estar no exílio, mas cá te espero)
P.S. moralista) Tens que largar as cigarrilhas. Ainda te desafiava para um puro mas nem me tem apetecido, nem acho que te prestasse um bom serviço...

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