O carro é um amontoado de lata velha, sem conforto, sem qualquer
interesse para além de uma persistente fiabilidade mecânica. Nele terão
sido percorridos muitos quilómetros, muitas sequências de paisagens,
muitas caras à beira das estradas ou da ruas, muitas solidões, muitas
conversas. Terá esse interesse, o carro, o de se fazer contentor de
memórias muitas, protagonista improvável. Ao longe, não muito longe,
mais para o fundo da rua, um vizinho aquece um motor de motorizada,
também velha de latas e afins, com pequenos golpes de acelerador,
supõe-se, pela cadência das subidas e descidas no regime de rotações.
Tudo velho e quase sem valor funcional. A meio da rua, os latidos do
enorme cão velho de outro vizinho: uma vida de reclusão com vista para o
exterior, uma ilusão de liberdade e o direito a fazer aquilo para que
se nasce quando se é cão de vizinho que gosta de ter cão a ladrar no
jardim. Dialogam profusamente, cão enorme e motorizada estática. O
carro, esse faz pouco barulho. Quando chove, o dono sabe que pode ir
dois quarteirões mais acima comprar pão. Sai da garagem e nota-se, no
seu interior, um ligeiro aroma a terra e cebola, a produtos hortícolas
com duas semanas, pendurados por sobre o tejadilho. Começa a ouvir-se o
cão jovem de outro vizinho, nas traseiras. Emite um ruído agudo, um
ganir mal controlado, algo entre desespero e esperança ingénua. Não sabe
ainda ser cão de vizinho que gosta de ter cão a ladrar e uivar em canil
exíguo no quintal traseiro, onde raramente vai. Como tudo se aprende e
como a submissão é a mãe de toda a convivência indigna, aprenderá que se
perspectiva diálogo com rebarbadora madrugadora de um quarto vizinho,
coisa de sábados de manhã. A rua existe, assente no pressuposto de que,
sem ruído, não há possibilidade de vida e que a felicidade dos vizinhos é
poder ter cão ou máquina que fale por eles, à falta de imaginação para
ler o mundo de outra forma. Paz às suas almas.
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