25/10/17

quase-nada-de-natureza quase-morta

O carro é um amontoado de lata velha, sem conforto, sem qualquer interesse para além de uma persistente fiabilidade mecânica. Nele terão sido percorridos muitos quilómetros, muitas sequências de paisagens, muitas caras à beira das estradas ou da ruas, muitas solidões, muitas conversas. Terá esse interesse, o carro, o de se fazer contentor de memórias muitas, protagonista improvável. Ao longe, não muito longe, mais para o fundo da rua, um vizinho aquece um motor de motorizada, também velha de latas e afins, com pequenos golpes de acelerador, supõe-se, pela cadência das subidas e descidas no regime de rotações. Tudo velho e quase sem valor funcional. A meio da rua, os latidos do enorme cão velho de outro vizinho: uma vida de reclusão com vista para o exterior, uma ilusão de liberdade e o direito a fazer aquilo para que se nasce quando se é cão de vizinho que gosta de ter cão a ladrar no jardim. Dialogam profusamente, cão enorme e motorizada estática. O carro, esse faz pouco barulho. Quando chove, o dono sabe que pode ir dois quarteirões mais acima comprar pão. Sai da garagem e nota-se, no seu interior, um ligeiro aroma a terra e cebola, a produtos hortícolas com duas semanas, pendurados por sobre o tejadilho. Começa a ouvir-se o cão jovem de outro vizinho, nas traseiras. Emite um ruído agudo, um ganir mal controlado, algo entre desespero e esperança ingénua. Não sabe ainda ser cão de vizinho que gosta de ter cão a ladrar e uivar em canil exíguo no quintal traseiro, onde raramente vai. Como tudo se aprende e como a submissão é a mãe de toda a convivência indigna, aprenderá que se perspectiva diálogo com rebarbadora madrugadora de um quarto vizinho, coisa de sábados de manhã. A rua existe, assente no pressuposto de que, sem ruído, não há possibilidade de vida e que a felicidade dos vizinhos é poder ter cão ou máquina que fale por eles, à falta de imaginação para ler o mundo de outra forma. Paz às suas almas.

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