Um dia, um daqueles dias em que chova até tudo ser
água, levo-te a dar uma volta de barco. Digo-te isto, como quem promete um
presente e não como ameaça, como anúncio de gravidez a contragosto, ou de muro
em que se esbarra para lamentação.
No dia em que te escrevi isto, chovia. Não tanto
que tudo fosse água, mas chovia o suficiente para que, da loja de decoração, do
outro lado da rua, se saísse com a água a meio da canela, descalças as clientes,
sacos ao alto juntamente com os sapatos de ir às compras.
Nesses dias, a rua esburacada fica mar calmo, com
pequenas ondas terminadas por espuma a rondar as entradas das casas. Tento
tirar uma foto, hesito entre a janela e a porta do café, acabando por perder o
lugar para um japonês que me propõe partilha do espaço à beira-porta. Faço-lhe sinal de que aguardo, de
que temos tempo. Temos tempo e água suficientes para dar voltas de
barco e para esperar que o japonês tire fotos, as fotos todas. Os carros e as inúmeras motorizadas, continuam a passar, no pico da maré alta de
chuva, porque se conhece o fundo daquele mar. Navegador experimentado navega em
qualquer mar, sem recear tempestades, dir-se-ia com sabedoria ancestral de
pacotilha. No cruzamento, os cães que costumam disputar os restos do lixo, acumulados
no lugar dos contentores desaparecidos, perderam tudo. Ao fim de umas horas,
terão à disposição mais lixo e andarão por ali a roçar as patas feridas, ou as
orelhas rasgadas, ou as crostas sem pelo. Nunca vi ali um cão que não tivesse
pago, em parte maior ou menor da sua carne, uma qualquer taxa ontológica, um tributo à sorte de existir.
A chuva leva
tudo e traz outro tanto. Isto não quer dizer nada, mas também to disse na carta
que te escrevi. Eu escrevo-te cartas, porque é esse o meu compromisso, escrever
cartas. Escrevo-te cartas sobre coisas que não vimos, nem ouvimos, nem sentimos,
como voltas de barco que não sei se daremos porque isso não é um compromisso,
mas uma promessa. O compromisso não pode ser quebrado, porque não é sonhável, ao contrário da promessa. Um destes dias, sonho-te uma volta de barco e iremos os dois por ali, até tudo ser água.
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