26/02/19


Um dia, um daqueles dias em que chova até tudo ser água, levo-te a dar uma volta de barco. Digo-te isto, como quem promete um presente e não como ameaça, como anúncio de gravidez a contragosto, ou de muro em que se esbarra para lamentação. 
No dia em que te escrevi isto, chovia. Não tanto que tudo fosse água, mas chovia o suficiente para que, da loja de decoração, do outro lado da rua, se saísse com a água a meio da canela, descalças as clientes, sacos ao alto juntamente com os sapatos de ir às compras.
Nesses dias, a rua esburacada fica mar calmo, com pequenas ondas terminadas por espuma a rondar as entradas das casas. Tento tirar uma foto, hesito entre a janela e a porta do café, acabando por perder o lugar para um japonês que me propõe partilha do espaço à beira-porta. Faço-lhe sinal de que aguardo, de que temos tempo. Temos tempo e água suficientes para dar voltas de barco e para esperar que o japonês tire fotos, as fotos todas. Os carros e as inúmeras motorizadas, continuam a passar, no pico da maré alta de chuva, porque se conhece o fundo daquele mar. Navegador experimentado navega em qualquer mar, sem recear tempestades, dir-se-ia com sabedoria ancestral de pacotilha. No cruzamento, os cães que costumam disputar os restos do lixo, acumulados no lugar dos contentores desaparecidos, perderam tudo. Ao fim de umas horas, terão à disposição mais lixo e andarão por ali a roçar as patas feridas, ou as orelhas rasgadas, ou as crostas sem pelo. Nunca vi ali um cão que não tivesse pago, em parte maior ou menor da sua carne, uma qualquer taxa ontológica, um tributo à sorte de existir. 
A chuva leva tudo e traz outro tanto. Isto não quer dizer nada, mas também to disse na carta que te escrevi. Eu escrevo-te cartas, porque é esse o meu compromisso, escrever cartas. Escrevo-te cartas sobre coisas que não vimos, nem ouvimos, nem sentimos, como voltas de barco que não sei se daremos porque isso não é um compromisso, mas uma promessa. O compromisso não pode ser quebrado, porque não é sonhável, ao contrário da promessa. Um destes dias, sonho-te uma volta de barco e iremos os dois por ali, até tudo ser água. 

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