12/03/07

5/12/2006

O homem avançava. Fazia-o sem se preocupar com o que as pessoas em seu redor pudessem pensar. As calças estavam rasgadas no joelho esquerdo e tinham manchas de uma terra cor de barro perto do rasgão. Olhando para ele, teríamos a sensação de que o homem teria caído mas o seu andar não denunciava que por debaixo das calças rasgadas pudesse estar uma qualquer ferida, resultante de uma qualquer queda. Estranhar-se-ia apenas o facto de não haver, naquele sítio, qualquer terra vermelha, a única seria a do pequeno jardim público em frente ao quiosque onde me encontrava e essa era escura, quase negra. Segui-o, com o olhar, mais algum tempo. Ao meu lado, um velho com um casaco a cheirar a bafio fumava um cigarro, com a avidez de um esfomeado, ao mesmo tempo que folheava as primeiras páginas de um jornal desportivo. Ao ver passar o homem, em voz baixa e olhando de lado, comentou com o dono, suponho eu, do quiosque:- Estás a ver, Inácio, andam para aqui estes estrangeiros a fingir que trabalham e a gente a pagar!- Como é que sabes que o gajo é estrangeiro?- Pela cabeça em baixo, para não terem de falar. Parece que têm medo que a gente os coma. E viste as calças, não viste? Nem se lavam. Andam para aí nas obras e...O dito Inácio, apoiando-se nos jornais, esgueirou-se para poder ainda avistar o homem que passava, antes de ele virar à esquerda, na próxima esquina. Comentou que efectivamente tinha ar de estrangeiro, daqueles de Leste, com mau aspecto e que constava que alguns andavam sempre armados para se poderem defender uns dos outros, porque com a bebida não têm mão sobre si próprios.Deixei discretamente o jornal que ia comprar em cima dos outros. Não me apetecia mais ter de ouvir aqueles dois, o Inácio e o seu conhecido, a especular sobre o tal supostamente estrangeiro. Contornando o quiosque e seguindo a rua até ao fim, virando à direita, podia cruzar-me com o homem das calças rasgadas e, pelo menos, ver-lhe a cara. Pelo tempo transcorrido, deveríamos cruzar-nos quando eu estivesse a virar. Talvez, se eu esperasse um pouco, conseguisse obrigá-lo a desviar-se de mim ou a pedirmos desculpa, caso fossemos um contra o outro. Esperei uns segundos e avancei. Reparei que o homem estava em frente a uma porta, continuei a andar, lentamente, como quem passeia, de forma tão natural quanto possível. Falava com alguém para dentro da casa, uma voz de mulher. Eram ambos portugueses e a mulher chorava enquanto lhe perguntava se tinha a certeza. De dentro da casa vinha um cheiro a sopa. O homem baixou a cara e respondeu que sim. Deixei cair a carteira e baixei-me para a apanhar, tentando ganhar tempo para entrar naquela privacidade que me tinha enfeitiçado. Ficaram calados. Apenas a borracha dos meus sapatos a chiar na calçada já húmida e um latido de cão numa varanda qualquer, nada mais se ouviu.- Entra, estou a fazer uma sopa, sempre aqueces.- Obrigado.Ele deu-lhe um beijo na face e pude ver-lhe a cara molhada pelas lágrimas.- Fiz o que pude.- Eu sei.Ouvi o ruído seco do fechar da porta já depois de passar frente à porta. Continuei, voltei à direita em direcção ao quiosque. Passei pelos dois fulanos, o Inácio e o companheiro do casaco bafiento. Baixei a cara ao passar por eles. Também eu era um estrangeiro, daqueles de Leste, também eu tinha medo que me comessem.Como nos filmes, nessa noite sonhei com o irmão daqueles dois, do homem das calças rasgadas e da mulher que chorava. Sonhei como ele tinha caído do andaime e como o irmão procurara mantê-lo agarrado à vida. Sonhei com o homem a olhar para os olhos do irmão, já fechados e a deixar cair umas lágrimas grossas enquanto lhe afagava a cara ainda quente com a barba rala mal feita. Sonhei com um desfecho para aquela cena que me absorvera, um final tão estrangeiro quanto o homem que passou por nós naquele fim de tarde, frio, sem chuva.

2 comentários:

isabel disse...

Extraordina´ria narrativa.
Estou absolutamente rendida ao blog.
Parabéns!

redonda disse...

Li até aqui. Gostei dos textos que escolheu e dos que escreveu. Tenciono voltar outras vezes, mas talvez em silêncio porque não me sinto à altura de comentar. Gostei muito do que escreveu.