10/07/07

Lúcia I

Gostava de escrever nomes próprios em pequeninos pedacitos de papel que sobrepunha, em pilhas distribuídas concentricamente, na mesa que tinha sido a dos pequenos-almoços. Dava quase a impressão de que construía as fundações de uma qualquer pequena torre de Babel à sua escala, à escala da sua pequenez, da sua tolhida e encolhida mundividência, da ininteligibilidade que sentia rodeá-la, como que uma bolsa de um líquido amniótico envenenado e sufocante.
Todos os dias subiam um pouco mais, as ditas pilhas de papel, a dita torre de aparente desnorte. Todas as pessoas tiveram um nome e, para ela, os nomes davam corpo e alma de papel à memória de todas as pessoas que, no mundo, vão morrendo por razões estúpidas, sejam elas quais forem.
De entre as razões mais estúpidas para morrer, Lúcia elegera a solidão como a mais evidentemente desprovida de dignidade. Morrer porque se está só é algo que, numa crua lógica, racionalmente, não faz sentido ou faz tanto sentido como parar de respirar só porque é repetitivo, porque aborrece. Aborrece o ritmo da respiração, a dois tempos, o inspirar que obriga ao expirar, e tudo se repete inexoravelmente até ao fim e nem por isso, só por isso, decidimos interromper esse desígnio mecânico e vital.
Encarava a solidão como um jogo de xadrez a sós, um contemplar das peças imóveis porque quem ataca o rei já delineou a sua defesa e tudo está consumado antes ainda do mover do primeiro peão. A solidão é o jogo do não valer a pena. A solidão aborrecia-a. Tinha, aliás, começado a aborrecê-la no dia em que, pela primeira vez, acordou ao pé do marido com a sensação de que tinha o corpo moído. Começou a ficar só no dia em que decidiu que ele não lhe bateria mais, que não lhe retiraria o último fio de dignidade da alma. Confirmou a solidão no dia em que se consumou a separação e as vidas continuaram. Lentamente, a solidão começou a alimentar-se dela, resignou-se.
Começou então a empilhar os pedacinhos de papel.

3 comentários:

rtp disse...

Lindo texto sobre a cruel solidão que lentamente vai matando...

(Aproveito também para desejar as maiores felicidades para o grande momento que se avizinha!)

P disse...

Obrigado.

Luiz Carlos Reis disse...

Conto perfeito! Constraste entre solidão, angústia, anseios e devaneios ...Gostei do que lí!
Prosa marginal!



Abraços!