27/08/07

Efeitos colaterais do Muro: onde a Friedrichstraβe e a Schützenstraβe se cruzam.

Olhou-o nos olhos, enquanto esperavam as bebidas. Fez uma longa pausa. Ele sorriu. Parecia feliz e tranquilo ali, na esplanada, a noite a começar, menos carros na avenida larga, mais pausas nos ruídos do dia-a-dia. Olhou-o nos olhos e disse-lhe que seria a última vez que o veria, à excepção de alguma coincidência, talvez. Disse-lhe que nunca mais o veria à mesa, a escolher com o garfo a comida, meticulosamente, guardando o melhor para o fim. Disse-lhe que nunca mais veria o seu acordar tranquilo, a sua calma perante a adversidade. Ele perguntou-lhe se teria feito ou dito algo que pudesse tê-la magoado. Ela respondeu-lhe que não, que ele nunca a tinha magoado, apenas não suportava mais a sua presença. Disse-lhe que, se ele estivesse a pensar se ela ainda o amava, a resposta seria sim, sem hesitação. Disse-lhe que podia não se suportar aquilo que se ama, quer ele compreendesse, quer ele achasse um absurdo e que, para ela, absurdo seria continuar a fazer amor com alguém apenas porque se ama. Ele perguntou-lhe, tenso, se fazer amor não seria isso mesmo, corpo a corpo com alguém que se ama. Ela fitou-o nos olhos e disse-lhe não lhe importava muito se as suas frases estavam a ser coerentes. Disse-lhe isto e molhou os lábios na bebida fresca que entretanto chegara, o quente dos lábios vermelhos no frio do copo incolor, o sumo cor-de-sol, poente. Ele perguntou-lhe se era recente esta aversão. Ela respondeu que não era uma aversão, que apenas queria nunca mais olhar para o fundo dos seus olhos negros e que tinha decidido isso segundos antes de pedir o sumo de toranja que agora bebia. Ele baixou ligeiramente a cabeça. Segundos depois, pediu-lhe desculpa e levantou-se. Caminhou ao longo da muito longa avenida. Percorreu-a toda. Chorou. Chorou como choram os homens que choram. Sentiu que algumas pessoas afastavam o olhar. Sentiu respeito. Sentiu que caminhava sem sentido mas não conseguia parar. Olhava o chão como se esperasse que dele saísse algo, como se algo pudesse levantar-se à sua frente e tomá-lo pela mão, como um anjo da guarda. A certa altura parou e sentou-se no passeio. Resistiu várias vezes à sedução de atravessar a rua e ao desejo de encontrar um carro que não conseguisse parar a tempo de evitar o seu corpo dormente e a sua alma dorida. Subitamente levantou-se e caminhou em direcção a casa. Sentia o vazio deixado por aquela mulher que o amava mas não suportava a sua presença. Sentiu que a amaria sempre e que, tão cedo, não lhe seria possível fazer amor com alguém, sentir outra pele que não aquela, olhar para outros olhos que não aqueles, fundos, avassaladores. Entrou em casa, sentou-se à janela do quarto e, toda a noite, viu os carros que passavam, um após o outro. Imaginou-os, talvez, como criaturas perdidas, sem rumo na noite, pouco importava que o fossem ou não. Ela bebeu o sumo até à última gota, tocou leve e carinhosamente o copo dele com os lábios. Fechou os olhos e atravessou tranquilamente a avenida, como uma alma perdida.

23 comentários:

ml disse...

"Sentiu que a amaria sempre e que, tão cedo, não lhe seria possível fazer amor com alguém, sentir outra pele que não aquela, olhar para outros olhos que não aqueles, fundos, avassaladores."

não sei como te dizer que estas palavras fizeram mais sentido do que quaisquer outras que haja alguma vez lido. *

Claudia Sousa Dias disse...

"As coisas mais importantes, as grandes coisas ficam sempre por dizer..." (Arundhati Roy In "O deus das pequenas coisas")


Lindo texto Baudolino...

Onde nas entrelinhas se calhar conseguimos ler o que ficou por explicar...


CSD

un dress disse...

perdidamente.

ainda à espera. de quÊ...?



/e o sobressalto deesta escrita.

tão bom de se (re)ler...:)


*

António Miguel Miranda disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Rhiannon disse...

Parabéns Baudolino!! Belo texto.

António Miguel Miranda disse...

Divulgação

Mais um Blog que se tornou um Livro!

Filme da apresentação disponível no YouTube em “Camarada Choco”

www.camaradachoco.blogspot.com
www.livrosnet.com

rui disse...

Olá Baudolino

Estonteante, imprevisível, absurdo, mas belo!

Grande abraço

x disse...

"Fechou os olhos e atravessou tranquilamente a avenida, como uma alma perdida."

a tua escrita toca-me, como poucas coisas. gosto das palavras simples.

digo isto centenas de vezes e a toda a gente, mas de facto,as palavras sem rendilhados que as curvem, que as carreguem com pesos desnecessários são as que mais me dizem!
sinto que os textos d'a cadeira' (que estão no novo mundo) se afastam bastante da genialidade dos teus e da simplicidade que procuro (a sublime, a verdadeira)... mas têm muito daquilo que me preenche, uma espécie de singeleza , acho...
obrigada, adoro este cantinho. :)

Joaninha disse...

Escolher a comida e deixar o melhor para o fim... Que recordação! Era o que dizia a minha avó materna!

J. disse...

Tão real, tão possível. Segue-se um luto profundo, que nem a erosão do tempo chega para fazer desaparecer no horizonte dos dias. Parabéns. J

Nota: Não foi antes de pedir o sumo que ela decidiu...

Lídia Lopes disse...

Adorei o texto. "Invadiu-me" totalmente. Muito bom!

Maria P. disse...

Neste gigante que é a net e a nomeadamente a blogoesfera, ainda existem espaços fantásticos, como este, que justificam este existir.

Um abraço*

Isabel Moreira disse...

obrigada.
e obrigada por este texto.

Cusco disse...

Olá! Antes de partir de férias venho deixar um abraço e um obrigado por todas as simpáticas visitas com que tive o prazer de ser distinguido.
Voltarei em breve…!
SE DEUS QUISER!

Luiz Carlos Reis disse...

E como vamos explicar os anseios angustiantes quando o assunto é amar? Belo conto! Vejo um amor platônico um tanto quanto mal conduzido ele vai se dar bem!

Abraços Baudolino, obrigado pela visita ao Oficina!

filipelamas disse...

Senti mesmo a cidade. Quem lá esteve entende bem a profundidade do seu texto!
Forte abraço.

x disse...

já li e voltei a ler o teu texto... centenas de vezes. tocou-me mesmo. *

jguerra disse...

Olá Baudolino. Lendo apetecia ir chorando, também, como os homens choram.

Lendo queria abraçar alguém, sentir aperto e carinho e transmiti-lo.

Acho que dos mais belos que li no teu blog (e em muitos blogs inclusive o meu).

Bom regresso (mas que texto sensacional deixaste um mês depois do teu dia).

mafalda disse...

Belíssimo conto, Baudolino. Mesmo, mesmo ao meu estilo (bom, não quero com isto dizer que poderia ter sido eu a escrevê-lo. Antes pelo contrário, não saberia). Digamos então assim: um conto dos que gosto MUITO de ler e que gostaria de conseguir escrever.

Estou de volta e espero que tu também não fiques ausente, agora que cheguei (egoísta, até mais não, esta Mafalda!).

Beijos.

Lana disse...

Olá Baudolino,
sempre muito bom.
1 sorriso luminoso
Lana

x disse...

venho procurar coisas novas e fico sempre por cá, largos minutos a ler outra vez estas palavras tão bonitas .*

PoesiaMGD disse...

Belo e perfeito! Gostei de te conhecer!
Um abraço

goretidias

http://www.escritartes.com

Isabel Moreira disse...

obrigada...
e obrigada