26/03/08

Fazes hoje o luto por ninguém que tenha morrido. Não foi ninguém hoje para debaixo da terra fria deste frio fim de Março. Contudo, as lágrimas percorrem o teu rosto e a perda ensombra-te o olhar. Abriste hoje os olhos, de manhã, e quiseste fechá-los de novo, ignorar o que te faz sentir mais velho. Estás hoje mais velho, garantidamente, do que ontem. Se estás mais maduro... duvido. O teu mundo perfeito quis mostrar-se imperfeito e nascer para que todos o vissem. Rebentaram as águas e, do útero da tua fantasia saíu uma violência muda, surda, velha e amarga, pequenina e mesquinha, com modos de quem não é lobo mas está a adorar ter-lhe vestido a pele. É assim mesmo. E, como por tantos outros partos indesejados de coisas indesejadas, choras. Choras e fazes luto. Choras porque não és mais do que uma criança que a vida protegeu cegamente. E fazes luto, um luto carregado por ti, por aquilo que não és capaz de manter vivo no pálido sol coberto de nuvens cobardes que és tu e a tua vida. No teu mundo, tudo deveria fazer sentido. Talvez sejas tu a peça errada do puzzle que se foi tecendo à tua volta, talvez te leves demasiado a sério, prenhe de narcisismo e autocomiseração. Paciência. Já nasceste. Aguenta-te com o resto. Consola-te: isto não dura sempre. É irónico, não é? Lembras-te de teres desejado a imortalidade na tua infância? Ainda bem que cresceste, pelo menos nisto.

14 comentários:

Lídia Lopes disse...

Fico sempre sem palavras, porque qualquer comentário parece tão vazio diante de um texto assim.

Abraço

filipelamas disse...

Detestava ser imortal. Gosto de princípios, mas não temo os fins.
Obrigado pela partilha!
Abraço!

Lana disse...

Krido Baudolino
das cartas de amor do meu blog até ao luto do seu.
sem palavras mais uma vez fico quando leio as suas mensagens.
1 sorriso muito luminoso e até breve.
Lana

Joaninha disse...

A nossa finitude é algo que, mais tarde ou mais cedo, acabamos por aceitar. E sem grandes revoltas. Talvez seja crescimento.

Joana Roque Lino disse...

também eu estou de luto. por uma escuridão que não compreendo.

ml disse...

não consigo comentar este. não consigo.

obgda pelo comentário ao meu. tentativa de mudança de registo.

*

J. disse...

Caramba, que texto, parabéns! são muitos os lutos e são muitas as vidas. Há lutos que nos matam, depois nos fazem renascer, uma e outra vez. E a cada renascimento, a certeza de que somos capazes; e isso faz-nos aguentar.

un dress disse...

crescer... não sei

mas não...

luto e lutos e sempre criança

olhos alon nn g ados

ao

infinito






beijO

Ana Paula Sena disse...

Agradeço a visita que me fez passar por aqui e descobrir a profundidade destes textos! :)

A passagem do tempo, e a consciência que começamos a ter disso, é sempre um momento inevitável e que fere, mas que nos posiciona, talvez, no nosso real lugar no universo.
Na verdade, é um tema que me interessa... seja isto inútil ou não...

Alberto Oliveira disse...

... as minhas sentidas condolências por alguém que ainda não se finou. Não é todos os dias que tal acontece mas já nada me surpreende neste mundo de contradições. O mundo do "fazer sentido" só existe na nossa imaginação e por um determinado tempo. Pouco. Depois é preparar-mo-nos todos os dias para funerais anunciados.


abraço.

Claudia Sousa Dias disse...

Isto chama-se depressão...


CSD

Manuel Bruschy Martins disse...

A criança que cresce e deixa de querer a imortalidade antecipa o luto que representa a sua própria morte feita possibilidade. E nisso consiste o milagre de viver: na aceitação.

Muito bom texto. Parabéns.

lupuscanissignatus disse...

luto

logo

existo

mafalda disse...

Muito bom, amigo.
Beijo-te com carinho.