11/01/10

λήθη (líthi)

Tens sentido vontade de te atirar contra as paredes da tua impaciência, da tua impotência e de outras coisas terminadas em ciência que se foram edificando, solenes, à tua volta, não é? Tens sentido que às vezes te escorre difusa pelas veias uma dor de metal pesado que não consegues eliminar, que se acumula e te faz sentir que o chão é céu, é inferno mas repouso também?
"Sentes-te viva?", perguntar-te-iam no guião previsível daquelas vidas extraídas a frio de um molde feito para te sentires feliz. Responderias que sim e partirias o molde com raiva. E que forma terias então?
Vou pôr em palavras, as minhas, aquilo que me parece ser a tua angústia. Aceitas? Sorris. Vou tentar então. Deixa-me alimentar a minha fantasia de taumaturgo e adormece enquanto vou convocando palavras, as minhas, como se tuas fossem:
"Esqueceste-te de ti e, nesse esquecimento, encontraste o teu espaço de conforto, a tua nuvem, o teu tapete voador, a tua armadura, um reduto dramático de sobrevivência. Matas a dor que te consome a golpes de esquecimento. Acho inteligente, digo-o sem condescendência alguma. Talvez preferisses rumar a casa, ao jardim onde brincavas quando o mundo era tudo menos tu e quando a realidade não te fazia pensar em que unidade de medida se traduz o peso do teu universo ou a perversidade da sua deterioração. Não sabes quando tudo começou, quando encontraste as primeiras fendas na barragem, mas tens uma ideia limpa e digna de como pode acabar. Queres ajuda mas eu não consigo oferecer-te mais do que a minha passividade. Terás de desculpar embora possas chamar-me cobarde: aceito. Vou sugerir-te aquilo que, pretensiosa e sentenciosamente classificaria como uma metodologia: poderás começar por esquecer-me. Treina. Podes, depois, ir esquecendo tudo o resto e, no final, quando quiseres desligar a luz e abraçar o que quer que seja que nasce da luz apagada, poderás olhar-me nos olhos e sentirás o meu respeito, a minha homenagem e o mais que quiseres, se ainda tiveres a noção do que as coisas são e em que língua são nomeadas. Se tudo tiver corrido como previsto, não saberás quem sou eu, nem por que razão te olho mas, garanto-te, estaremos ambos ali, onde tudo acontece sem despedidas. O resto interessará muito pouco, quase tão pouco como tantas outras coisas que nunca saberemos, muito menos do que o bem ou o mal. "Destas e de outras coisas se faz a alma", disseste-me um dia, quando as palavras ainda te habitavam. Talvez o venha a esquecer, um dia.

9 comentários:

Any disse...

Que vontade, às vezes, de partir o molde...

Graça Pires disse...

Um belo diálogo/monólogo de quem conhece a natureza humana.
Um abraço.

x disse...

tão bons os últimos textos, levei algum tempo para os ler todos, especialmente com o volume de trabalho que tenho tido.

partilho contigo uma leitura de alguém que sabe o que são as palavras, e, que deves conhecer que me arrebata cada vez que leio:


(...)

escrevo-te enquanto não amanhece
a morte desperta em mim uma planta carnívora
o mundo parece despedaçar-se pelos desertos do meu delírio
pântano de lodo entre a pele da noite e a manhã
espaço de penumbras e de incertezas
onde podemos perder tudo e nada desejarmos ainda
por isso aproveito o pouco tempo que me sobeja da noite
este vácuo lento este visco dos espelhos
espessa escuridão agarrada à memória debaixo da pele
começa a asfixia o perigo de ter amado
no mais profundo segredo das noites devorávamo-nos
e um barco treluzia pelas cortinas do quarto
como um presságio
os objectos e a roupa atirada para cima das cadeiras
revelavam-me a pouco e pouco a desolação em que temos vivido

(...)

mais nada me podia acontecer
teu rosto chegava-me à memória como mancha de fumo
longínqua nódoa de água e sangue
nos pulsos
uma mancha e tu não chegaste

(...)

Al Berto «Três Cartas da Memória das Índias, 1983/1985»; "Carta da Àrvore Triste (à minha mulher)" in O MEDO

Lídia Lopes disse...

Embora esteja bastante atrasada, não quero deixar de agradecer os seus votos e desejar-lhe um Feliz Ano de 2010 cheio de sucessos pessoais e profissionais.

Rui disse...

Não se dá a alma com moldes. E nós com ela.

x disse...

oh e se é bonito (valeu a pena ler outra vez)*

x disse...

venho aqui todos os dias na esperança de mais produção literária encontrar. *

Claudia Sousa Dias disse...

"Lithi"= pedras, certo?


csd

P disse...

Cláudia,
é, de facto, um título pretensioso e algo equívoco mas apeteceu-me e saiu assim na altura. A outra hipótese seria Αμνησία, Amni̱sía mas empurrou-me a alma mais para o rio... até pelo cenário que criei ao escrever isto, a forma como 'vivi' a coisa.)
Pronuncia-se [lɛː́tʰɛː] e significa esquecimento, Letes, o rio do esquecimento.
abraço
P.