De como separar as coisas nem sempre separáveis, como se eu não fosse eu:
"Da minha janela vejo as folhas da laranjeira que o meu avô plantou.
Ao fundo, o telhado da casa do vizinho, sem nenhum encanto especial a não ser o de ser, para o vizinho, um tecto sob o qual tudo se passa quando está em casa, o vizinho. E vejo, sobre a linha que delimita o telhado, o céu. Está azul, hoje, o céu por sobre a casa do vizinho. Ele não o vê por sobre o seu telhado, o vizinho. Eu posso declarar sumariamente que está azul o céu porque o vejo.
Sobre a minha casa está um céu azul. Posso dizê-lo mas não o vejo. E agora, que falo apenas do que vejo, deveria ter-me abstido de descrever o que não vejo porque não posso fundir evidência com profissão de fé.
Sempre que afirmo que está sol em Aljezur porque alguém mo disse, faço uma profissão de fé que, em rigor, não deveria ter feito.
Hoje não farei mais profissões de fé: acredito que há folhas verdes na laranjeira que o meu avô plantou.
Outra coisa seria crer nas flores que talvez possam vir, ou no aroma depurado das laranjas que poderia comer."
5 comentários:
confesso que quando tenho saudades do meu avô (e não sou poucas as vezes) visito uns quantos textos teus. (é uma coisa boa).
«a profissão de fé» ou melhor o sentido com que usas o termo no desenvolvimento da ideia é qualquer coisa mais do que perfeito.
corro o risco de me tornar repetitiva, mas escreve mais. sabe tão bem ler... *
fizeste-me lembrar o quintal dos meus avós que tinha uma laranjeira fenomenal... que saudades de arrancar uma laranja à árvore e devora-la ali mesmo.
:)
A laranjeira que o avô plantou, o azul do céu , o sol de Aljezur.
Tríptito fantástico em que perpassam momentos de projecção num firmamento de luz e cor, sempre que a acalmia e a beleza estética te aclaram as ideias, seja ou não como " profissão de fé " .
Sabes que fiquei emocionado !
Tríptico.
a laranjeira da minha avó dava sombra.
Não comíamos as laranjas por serem demasiado ácidas
mas deitávamo-nos debaixo dos ramos de folhas verdes-escuras, pesados porque grávidos de frutos em cima de uma cama de fetos quer fomos buscar ao monte.
sentíamos o aroma das uvas americanas que pendiam da latada por cima de nós enquanto as vespas zumbiam à volta. As abelhas procuravam a fúcsia dos brincos de princesa, por debaixo da laranjeira ou das sempre noivas. as dálias, imensa e pesadas, de cores sensuais como as dançarinas espanholas ficavam junto ao muro, próximas da ameixoeira e daquele pessegueiro que eu gostava de trepar para ir buscar aqueles frutos de polpa farinhenta e voluptuosamente doce que abria ao meio para tirar o caroço deparando-me, quase sempre com um bicharoco mais guloso do que eu...
Deitada na cama de fetos, fechava os olhos e sonhava...ou lia. Era feliz.
Hoje no lugar da cama de fetos há cimento. A latada ddas uvas americanas foi cortada rente tal como a moita de amoras pretas que ficava junto ao poço. A avó partiu, as dálias desapareceram e as árvores já não dão fruto.
CSD
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