Começou, a dada altura, não interessará muito precisar quando, a falar com os pássaros. Primeiro encostava-se à parede do lado de fora da casa a remoer a solidão. Estava só e a casa parecia-lhe mais húmida, mais escura, sobredimensionada. Não formulou as coisas assim. Faço-o eu porque li isto nos seus olhos. Impossível sair para outra casa, outro lar, outra promessa de conforto para uma determinação impenitente de se arrastar pelo final da vida, à laia daquele sono que começa a chegar prematuramente ao serão. Em criança tinha o hábito de falar com os pássaros e os irmãos diziam-lhe que era meio aluada. Depois passou-lhe, disseram os irmãos também. Fez a vida toda, quase noventa anos de noite, dia, chuva e sol, rotina cósmica. Partiu o marido, ficaram os filhos, somaram-se as perdas, vieram os netos. Cediam as peças da sua infância, da juventude, da guerra, de mulher madura, uma por uma.
Passou a fechar a porta da frente, a que dava para a rua. Restringiu o seu mundo à porta que, da cozinha, dava acesso ao quintal, nas traseiras da casa.
Passou a fechar a porta da frente, a que dava para a rua. Restringiu o seu mundo à porta que, da cozinha, dava acesso ao quintal, nas traseiras da casa.
Começou, a dada altura, a falar com os pássaros.
Dava-lhes os seus pesadelos meio difusos e o arroz que não comia. Traziam-lhe os pássaros uma paz sem compromissos, uma gratidão feita de bicos e penas, sob o limoeiro. Carregavam no voo as penas dela, uma ou outra lágrima. Por vezes riam-se muito, ela e os pássaros. Falou nisso ao neto. Ele sorriu e teceu um comentário qualquer que soou a veredicto cinzento de senilidade. Provavelmente, sempre falou com os pássaros. Lembrou-se o neto de, um dia, ter visto a avó a guardar na mão um pardal caído do ninho. Fez a avó uma tala para o pardal. Lembrou-se o neto de que a viu falar para a palma da mão, um murmúrio, um sopro de vida que o levantou um pouco do chão. Ao voltar da escola, perguntou-lhe o neto pelo pardal e respondeu a avó que o pardal tinha ido à vida dele, que "estar por aqui onde ninguém sabe falar com ele, onde ninguém voa e onde toda a gente lhe pode fazer mal... tu não gostavas, pois não?" Pensou mais tarde o neto que o pássaro tinha morrido e que aquilo fora conversa para consolar criança. Pensou o neto, vinte anos mais tarde, que isto de falar com os pássaros era coisa que a avó sempre tinha feito. E, já de regresso à sua casa, pensou naquela cumplicidade e em como a avó era mais do ar já do que da terra. Dir-lhe-ia, na próxima visita, que a compreendia, que percebia e que achava bem que ela tivesse aqueles amigos, procurando não parecer um pai que aceita os amigos do filho adolescente como uma inevitabilidade, ou um neto condescendente face à aurora suave da demência.
Nunca chegou a dizer, como seria previsível, como sempre acontece quando contamos estas coisas que são verdade ou não. Nunca dizemos tudo. Por vezes, vezes demais, não dizemos absolutamente nada. Perdemos a coragem, perdemos o tempo e as oportunidades são pouco complacentes para connosco.
Começarei a falar com os pássaros.
2 comentários:
http://www.flickr.com/photos/e_labutis/5367676983/in/pool-birds#/photos/e_labutis/5367676983/in/pool-14477233@N00/ (porque às vezes dá vontade de ilustrar os textos, com retratos). *
Lindo !!!Sinto no ar o perfume da minha querida mãe.Era tão sábia...farejáva o ar,qual cão...abandonado ,morrera-lhe o dono de uma vida inteira .Tareca
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