Acordas com as articulações meio doridas. A noite foi de sono, suor e frio entremeados. Arrastas-te pelas rotinas do corpo. As da alma já as baniste, devoram-te pedindo que lhes dês forma. E tu, enquanto o teu corpo cumpre as rotinas da manhã, perspectivas-te no espelho feito por mãos tuas. E nele te vês, herói, uma espécie de Aquiles sem o calcanhar. Sabes, bem demais, que és mais calcanhar sem Aquiles que outra coisa qualquer, que vais acabar num acidente, numa cama de hospital ou na tua de casa, alagado no sangue do teu ponto vulnerável. És tu todo a tua própria vulnerabilidade e nunca, mesmo nunca, foste herói do que quer que fosse. Foi assim que enganaste a vida e o teu sonho, nessa decepção sedutora de que, um dia, serias diferente da tua velha tia que vias nas férias. Ao lado da arca frigorífica dos congelados, depois de te ter perguntado pela família e pelo ano todo, passado a três horas de caminho, vomitava-te as poesias intermináveis que tinha feito, começando pelas mais recentes, passando por citações da sogra dela, tua bisavó, os versos independentes do que corre nas veias. E tu suportavas aquilo, sorrias, compravas os congelados na mercearia da terra com um até depois, com muita saúde e muito gosto pelo reencontro. E tu sabes hoje, bem demais, que és tu, a tua tia e a arca frigorífica dos congelados num só, nisso em que te tornaste, um cidadão de pasta na mão e um fatinho conceptual rumo ao trabalho, bípede em trânsito para matadouro, conformado porque alguém comerá a carne e será feliz por isso, alguém se saciará e disso precisava. Funções sociais cumpridas, sacrifício que paga o ar que se respira. E montas a tua arca de congelados, com as postas de peixe em sacos, os grãos de ervilha e os espinafres porque todos temos de ir à mercearia. E sentas-te tu, paciente à espera que chegue a tua tia declamadora. Pelo meio, vais cumprindo as tarefas à laia de rato em labirinto mutante. A cada dia, o desafio de saberes porque fazes o que fazes e porque o fazes tão mal. Entretanto, chega a tua tia ao teu gabinete e começa a pôr na mesa palavras como estas, justapostas, e tu consegues partilhar do prazer que ela tem. Dás-lhe tempo, afinal, tens de escolher os congelados com critério, não desperdiças tempo porque tens o fatinho vestido e isso significa que esperas pelo inelutável no matadouro enquanto és o tu possível no local do ter que ser. Talvez acabes congelado, numa arca daquelas, num saco com uma etiqueta na qual talvez estejam impressos, ainda que por engano, uns versos da tua tia a louvar o sol, o mar e a loucura de ter que atirar palavras, nem que seja ao vento para que as leve.
4 comentários:
gostava de conhecer a tua tia. Ou a tia do teu personagem..
csd
Terá sido tia de ambos...
a minha passagem por cá é sempre demorada, leio os teus textos vezes sem conta. *
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