17/08/12

crónica de um enterro fácil

A tradição é um guardanapo de pano quadriculado com uma nódoa de vinho tinto feito a martelo. A tradição é ir à missa ao domingo e na noite de Natal porque temos oitocentos anos de História e mais santos que medalhas olímpicas. A tradição é um burro com sarna porque um cavalo é demasiada ambição e arrogância para quem não tem onde cair morto. A tradição é haver palhaço pobre e palhaço rico para podermos chorar com ambos. A tradição é recitar de cor os primeiros versos de Os Lusíadas, com desvelo patriótico e tom de homenagem fúnebre. A tradição é ouvir os versos do dito hino nacional com a melodia evocativa de um supermercado, em fundo, e corresponder ao apelo irreprimível de comprar produtos nacionais.
A tradição é uma merda que não te deixa dormir descansado porque é óleo de fígado de bacalhau que te faria bem à alma e bem a coisa nenhuma. A tradição deveria ser um papel amarrotado com raiva e por vingança de não se poder ser sem se ter sido.
Por ti, fazias revoluções todos os dias, se não te doessem as costas, de alto a baixo, os rins, o estômago e se não estivesses cansado da vida só porque a tens. Ainda assim, podes deixar este recado em banca de fruta de mercado e em outros sítios de maior potencial inflamatório. Não tenhas medo que te achem diferente daquilo que eras: passaste de sensato a pirómano impenitente.
Mata a tradição e poderás abolir o pretérito perfeito, o mais que perfeito e toda essa corja de recursos bélicos obsoletos e a cheirar a corpo de rei fundador, putrefacto em panteão. Morra esse gás poluente saído do escape infame da História! Morra a História e escreva-se-lhe um obituário tratando-a a minúsculas, inscrevendo na lapide a sua fama de meretriz traficante de indultos, sobressaltos, deveres e sacrifícios. Assine-se-lhe certidão atestando que se terá finado sem honra nem glória. Meta-se-lhe, por entre os folhos da mortalha, uma carta de recomendação para que entre definitivamente nos quadros do inferno mais fundo, sem passagem a regimes de mobilidade.
A tradição está já a meia haste à porta da tua casa, esfarrapada, suja, com as cores deslavadas e com uma multa de estacionamento proibido presa com um alfinete oxidado a meter-lhe o tétano pelas veias ressequidas. Paz à sua alma.
 
 
 
"Souviens-toi que le Temps est un joueur avide
Qui gagne sans tricher, à tout coup!"
(Charles Baudelaire, Les Fleurs du Mal, "L'horloge")

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