A
tradição é um guardanapo de pano quadriculado com uma nódoa de vinho tinto
feito a martelo. A tradição é ir à missa ao domingo e na noite de Natal porque
temos oitocentos anos de História e mais santos que medalhas olímpicas. A
tradição é um burro com sarna porque um cavalo é demasiada ambição e arrogância
para quem não tem onde cair morto. A tradição é haver palhaço pobre e palhaço
rico para podermos chorar com ambos. A tradição é recitar de cor os primeiros
versos de Os Lusíadas, com desvelo patriótico e tom de homenagem fúnebre. A tradição é ouvir os versos do dito hino
nacional com a melodia evocativa de um supermercado, em fundo, e corresponder
ao apelo irreprimível de comprar produtos nacionais.
A
tradição é uma merda que não te deixa dormir descansado porque é óleo de fígado
de bacalhau que te faria bem à alma e bem a coisa nenhuma. A tradição deveria ser
um papel amarrotado com raiva e por vingança de não se poder ser sem se ter
sido.
Por
ti, fazias revoluções todos os dias, se não te doessem as costas, de alto a
baixo, os rins, o estômago e se não estivesses cansado da vida só porque a tens.
Ainda assim, podes deixar este recado em banca de fruta de mercado e em outros
sítios de maior potencial inflamatório. Não tenhas medo que te achem diferente
daquilo que eras: passaste de sensato a pirómano impenitente.
Mata a tradição e poderás abolir o pretérito perfeito, o mais
que perfeito e toda essa corja de recursos bélicos obsoletos e a cheirar a
corpo de rei fundador, putrefacto em panteão. Morra esse gás poluente saído do
escape infame da História! Morra a História e escreva-se-lhe um obituário
tratando-a a minúsculas, inscrevendo na lapide a sua fama de meretriz
traficante de indultos, sobressaltos, deveres e sacrifícios. Assine-se-lhe certidão atestando que se terá
finado sem honra nem glória. Meta-se-lhe, por entre os folhos da mortalha, uma carta de recomendação para que entre definitivamente nos quadros do inferno mais fundo, sem passagem a regimes de mobilidade.
A
tradição está já a meia haste à porta da tua casa, esfarrapada, suja,
com as cores deslavadas e com uma multa de estacionamento proibido presa com um
alfinete oxidado a meter-lhe o tétano pelas veias ressequidas. Paz à sua alma.
"Souviens-toi que le Temps est un joueur avide
Qui gagne sans tricher, à tout coup!"
Qui gagne sans tricher, à tout coup!"
(Charles Baudelaire, Les Fleurs du Mal, "L'horloge")
Sem comentários:
Enviar um comentário