24/11/12

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O papel era chinês, uma luz chinesa, que ele sabia ser chinesa, sem nunca ter estado na China. Era algo que sabia por intermédio dos sonhos nos quais uma mão gigante de Deus lhe revelava a sua filiação profunda, cenários, texturas, tudo como se tivesse vivido em outros lugares e como se lhe fossem familiares sabores de legumes exóticos cozinhados em furna de enxofre. O papel forrava a parede e podia sentir-se o quase  relevo alongado de bagos diminutos, bagos de arroz sobre cimento suave. Ao lado alguém foheava um livro volumoso de ciência, daquela ciência que faz avançar o mundo, que o dá a conhecer sem qualquer tipo de piedade. Era crua, a realidade, e nada o podia proteger da sua rugosidade. A janela fechava mal e, por falta de dinheiro para a mandar arranjar, por falta de habilidade para o fazer ou por um conjunto de factores sem poder para fazer correr sangue, o ruído de fora entrava, não como se estivesse aberta a janela. Dou outro lado o muro branco da casa do vizinho, um branco europeu, sem arroz na parede, ar nacional, coisa conhecida, nada de ar cosmopolita a ser respirado como língua estrangeira. Ali se manteve, enquanto as mentiras fumegavam entre as duas camadas da perede dupla da casa, mentiras sobre o que é, o que não é e o que se recusa a ser. Tudo isto é material combustível, tudo isto poderia ser agora usado para um Auto de Fé, sem culpas, sem lamentos, sem vozes a chamar pela mãe em caso de pânico. Tudo bem visto, haveria letra para música no inferno pessoal de cada rato no porão do seu barco privativo a afundar.

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