O
papel era chinês, uma luz chinesa, que ele sabia ser chinesa, sem nunca ter
estado na China. Era algo que sabia por intermédio dos sonhos nos quais uma mão
gigante de Deus lhe revelava a sua filiação profunda, cenários, texturas, tudo
como se tivesse vivido em outros lugares e como se lhe fossem familiares
sabores de legumes exóticos cozinhados em furna de enxofre. O papel forrava a
parede e podia sentir-se o quase relevo alongado de bagos diminutos, bagos de
arroz sobre cimento suave. Ao lado alguém foheava um livro volumoso de ciência, daquela ciência
que faz avançar o mundo, que o dá a conhecer sem qualquer tipo de piedade. Era
crua, a realidade, e nada o podia proteger da sua rugosidade. A janela fechava
mal e, por falta de dinheiro para a mandar arranjar, por falta de habilidade
para o fazer ou por um conjunto de factores sem poder para fazer correr sangue,
o ruído de fora entrava, não como se estivesse aberta a janela. Dou outro lado
o muro branco da casa do vizinho, um branco europeu, sem arroz na parede, ar
nacional, coisa conhecida, nada de ar cosmopolita a ser respirado como língua
estrangeira. Ali se manteve, enquanto as mentiras fumegavam entre as duas
camadas da perede dupla da casa, mentiras sobre o que é, o que não é e o que se
recusa a ser. Tudo isto é material combustível, tudo isto poderia ser agora
usado para um Auto de Fé, sem culpas, sem lamentos, sem vozes a chamar pela mãe
em caso de pânico. Tudo bem visto, haveria letra para música no inferno pessoal
de cada rato no porão do seu barco privativo a afundar.
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