Há algo no hoje que te
faz pensar em distância, sem perguntas nem preocupação com possíveis dúvidas.
Apenas um passo após o outro, apenas o estar sentado num café de esquina. Na
televisão do café, uma bailarina executa uma coreografia sem som. O café seria
o café Adler, recorrente nas tuas fantasias de anonimato pelo efeito da
distância, recorrente nas suas mesas de mármore gastas e na tinta que julgas
recordar nas madeiras, a evocar o aparador da casa da praia em que tantos e
tantos anos passaste férias. Podia ser a América e a tua imaginação na proa de
um navio-cliché a avistar uma estátua-de-liberdade. Seria indiferente. Preferes o café?
Seja. Olhas e sabes que nunca tocaste violino nem piano, que nunca dormiste ao
relento, que isso te define, tal como te define, nesta mecânica universal que
negas até ao último argumento, a tua relação com o álcool, com o haxixe, com a
comida, com as flores. Já há demasiado tempo que, da janela do café, olhas para o rapaz e para
a rapariga que estão sentados no passeio, do outro lado da rua. Ele tem um boné
a imitar os antigos do exército soviético na mão. Roda-o, experimenta-o. Ambos
riem, beijam-se. Ela rouba-lhe o boné e faz o mesmo que ele. Colocam o boné no
chão, pose de mendigos. Retiram o boné do chão. Ficam encostados, a cabeça dele
sobre o ombro esquerdo dela, a cabeça dela ligeiramente inclinada para a
direita, encostada à dele. Nunca tiveste um boné exótico e sabes que isso te
define tanto quanto a forma como te encostas na cadeira ao beber um café com
leite. Olhas a tua companheira e apetece-te comprar um boné soviético e
sentar-te no passeio com ela. Antecipas o prazer que ambos poderiam ter mas não
o fazes. Sabes que isso te definiria, tanto quanto o dormir ao relento ou a
nudez na praia. Sabias que tudo o que se define se pode redefinir? Sabes mas
preferes ser comedido. Seja. Há um tempo para tudo. A vida é breve mas não tem
de acabar hoje. Amanhã experimentas outra vez. Já agora, se quiseres dormir ao
relento, nu, na praia, posso recomendar-te um sítio. Quanto aos bonés, se
quiseres, sei que, perto do café Adler, havia à venda mas, quanto a isso, já não garanto nada.
1 comentário:
P,
deixaste-me sem palavras! Ainda estou a digerir...
um beijinho
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