30/05/13

quase-carta sem som


Há algo no hoje que te faz pensar em distância, sem perguntas nem preocupação com possíveis dúvidas. Apenas um passo após o outro, apenas o estar sentado num café de esquina. Na televisão do café, uma bailarina executa uma coreografia sem som. O café seria o café Adler, recorrente nas tuas fantasias de anonimato pelo efeito da distância, recorrente nas suas mesas de mármore gastas e na tinta que julgas recordar nas madeiras, a evocar o aparador da casa da praia em que tantos e tantos anos passaste férias. Podia ser a América e a tua imaginação na proa de um navio-cliché a avistar uma estátua-de-liberdade. Seria indiferente. Preferes o café? Seja. Olhas e sabes que nunca tocaste violino nem piano, que nunca dormiste ao relento, que isso te define, tal como te define, nesta mecânica universal que negas até ao último argumento, a tua relação com o álcool, com o haxixe, com a comida, com as flores. Já há demasiado tempo que, da janela do café, olhas para o rapaz e para a rapariga que estão sentados no passeio, do outro lado da rua. Ele tem um boné a imitar os antigos do exército soviético na mão. Roda-o, experimenta-o. Ambos riem, beijam-se. Ela rouba-lhe o boné e faz o mesmo que ele. Colocam o boné no chão, pose de mendigos. Retiram o boné do chão. Ficam encostados, a cabeça dele sobre o ombro esquerdo dela, a cabeça dela ligeiramente inclinada para a direita, encostada à dele. Nunca tiveste um boné exótico e sabes que isso te define tanto quanto a forma como te encostas na cadeira ao beber um café com leite. Olhas a tua companheira e apetece-te comprar um boné soviético e sentar-te no passeio com ela. Antecipas o prazer que ambos poderiam ter mas não o fazes. Sabes que isso te definiria, tanto quanto o dormir ao relento ou a nudez na praia. Sabias que tudo o que se define se pode redefinir? Sabes mas preferes ser comedido. Seja. Há um tempo para tudo. A vida é breve mas não tem de acabar hoje. Amanhã experimentas outra vez. Já agora, se quiseres dormir ao relento, nu, na praia, posso recomendar-te um sítio. Quanto aos bonés, se quiseres, sei que, perto do café Adler, havia à venda mas, quanto a isso, já não garanto nada.

1 comentário:

S disse...

P,
deixaste-me sem palavras! Ainda estou a digerir...

um beijinho