21/03/17

Excertos de 'Cartas Exiladas' 2.0

Barfleur, 27 de Julho de 2007

Caríssimo Álvaro, querido amigo:

Antes que decidas telefonar, gastando o pouco dinheiro que tens numa chamada internacional, envio-te as linhas que lerás de seguida, se tiveres paciência. Não substituem as nossas conversas mas talvez te evitem mais uma passagem pelo espelho sem que te vejas como eu acho que te deverás ver. Pensava em ti, em vocês, à janela, enquanto bebia um copo com a Clara, ao fim da manhã e fui escrevendo. São palavras simples mas são as minhas, para ti, com os meus clichés, que sempre combateste mas que, como sabes, me dão tanto prazer...

Passou-nos a vida por cima e eu acho que a tens gasto a fazer contas. Contas ao dinheiro, sempre exíguo, contas ao mal-amado que te sentes, à falta de reconhecimento alheio, coisas das quais não precisas para ser um homem cumprido, todo. Mas cada um é como é e tu és assim, sempre a querer beber o veneno da vida em pequenas gotas. Ou é o que parece. Sei que não será assim. Pelo menos não será sempre.

"Contas à vida, sabes que estás numa qualquer encruzilhada da mesma. Pareces suspenso e fazes contas de somar, com o cheiro do caderno da escola, da madeira velha da carteira e do sabor da borracha, meio mordida, misturado com o do lápis amolecido pela saliva. E somas tudo, a história do encontro dos teus pais em terras de fronteira, o cabelo do teu pai a cair, o colo meio inseguro da tua mãe, os teus avós e bisavós, todos, as brigas com irmãos pelas coisas estúpidas de sempre, as rivalidades, as brincadeiras. A adição de todas essas parcelas devolve-te o teu perfil, estás convencido disso. Percebes-te também no que assumiste ser a tua linha da frente e isso significa que acabou, para ti, a idade dos prodígios. Ou não. Nesta linha, que ocupas vacilante, podes proceder a outras operações e fazes contas, de novo as aritméticas, sem rigor algum. À tua frente, iluminam-se a tua mulher e os teus filhos que escrevem em ti coisas sobre o presente e o futuro. Tens tu agora menos cabelo na cabeça mas isso não te incomoda: é uma subtracção e não estás a treinar isso agora. Atrás de ti, vês outros ramos da árvore que te pariu, os teus irmãos e as suas linhas da frente. Vês ao fundo os troncos das árvores que morreram de pé, lugar-comum. Receias que, em breve, a soma das parcelas te revele o que não queres saber, quanto tempo tem o teu mundo. Talvez o tenha todo mesmo mas não tens suficiente fé em nada. Receias tanto que te sentes tentado a viciar as contas. E começas e recomeças, divides, multiplicas, como se apenas brincasses com os números, numa retórica algébrica qualquer. Que não pensas nisso, dizes tu. Pois profetizo, sem dom para tal, que dias virão nos quais sentirás a dor da perda e outros nos quais terás alegrias. Tudo simples, como vês. Na tua contabilidade da vida terás sempre o cheiro das casas que habitaste, o volume daqueles que abraçaste, os sabores que sempre aprendeste que a água não tinha, as feridas nos joelhos, repetidas de tanto tentar descrever a curva que descia da muralha para a rua dos teus avós em velocidade crescente, o plátano gigante em terra onde só passaste dois anos, a serra que te deslumbrou com quase-neve, a planície e o cheiro infinito a calor insuportável, os ninhos das andorinhas no Inverno, os cabelos brancos dos teus filhos, a mão na tua da tua terna companheira, avó-rochedo, os túmulos dos teus pais e avós, o colo inseguro da vida a dizer-te que está na hora de seres um homem. Profecia final, para que possas ir jantar tranquilo: serás."

Teu amigo sempre, Isidro.

Sem comentários: