11/04/17

Excertos de 'Cartas Exiladas' 3.0

Cetara, 23/09/2016
Velho amigo velho, como passas?
Por aqui estou, velho, como tu, a ver os dias passar. As obras estão quase acabadas e a casa está a ficar bonita. A vista é como te descrevi na última carta. Temos dois quartos de sobra e o convite está feito.
A tua última visita, ainda estava eu por aí, como te lembras, foi meio estranha, deixou-me um travo a diospiro verde na boca, nada mais do que isso. E sabes que gosto de diospiros, em todos os seus estádios de maturação, mas os verdes são aqueles diabos... E assim foi quando me visitaste, em Novembro do ano passado. Trocámos uma mão cheia de cartas, entretanto, mas não há meio de amadurecer o raio do diospiro e fico sempre com a boca a precisar de dizer mais.
Sei que toda a tua preocupação com a eficácia do mundo, a que nele está patente e a que tu matarias para que se manifestasse em todo o seu esplendor, esbarra na minha preocupação em lutar contra o excesso de preocupação com a eficácia, sobretudo, porque o faço com uma displicência que te exaspera. O meu mundo não tem o rigor cartesiano do teu, o teu não tem a deriva caótica do meu, és um revolucionário do plano, eu sou um revolucionário dos acasos. Mesmo que isto seja uma impossibilidade, é assim que vejo a revolução. Assim estamos, nisto, e assim nos temos ido fazendo velhos, a oferecer pedaços de diospiro verde um ao outro no final da refeição partilhada, da conversa, do vinho. E a isto têm assistido os nossos, nesta nossa família alargada, que o é, mas apenas porque a distância nos deixa espaço para a sanidade. Um dia, poderemos estar mais tempo juntos, todos. Poderemos comprar duas casas em terrenos contíguos, com duas hortas, trocaremos sementes de pimentos e de malaguetas picantes, laranjas e tangerinas, diospiros. E esperaremos que estes amadureçam, não te parece?
Quando o teu César voltar de Valência, diz-lhe que tenho aqui uma aguardente especial à espera dele. Ele que se meta no avião e corra para cá, porque vale a pena. Eu vou buscá-lo ao aeroporto e, em menos de uma hora estamos aqui. Os autocarros são um inferno dispensável. A Joana vai fazer a conversa do costume, que ele tem tanto para ver e fazer aqui sem ser sentar-se com o velho a molhar a conversa na bebida. Eu não discordo, mas estou convicto de que a aguardente justifica a vinda. E vou mandar, por ele, uns biscoitos de azeite e limão, diferentes dos da tua mãe mas muito bons mesmo. A ver o que me dizes deles... A aguardente, se quiseres, vem cá bebê-la! Não vou aí com a garrafa porque sabes que não consigo voltar aí. Não vou voltar nunca... Este é, agora, e até mudar de opinião, o meu lugar para sempre. Também se vive sem as raízes na terra, quando a terra onde nascemos se revela ácida e inabitável.
Um abraço, dá notícias e não faças demasiadas birras à Augusta.
Celso

Sem comentários: