31/10/17

Coisas 87,1% verdadeiras de que me lembro

Não me recordo de ir ao cemitério em dia de Todos os Santos, de Finados, em dia de muita gente por ali. Ir ao cemitério era uma viagem como outras, feitas a pé, pela mão da minha avó materna, tardes sossegadas de sol forte, sem sensação de calor. 
Levava eu, em um desses momentos, camisa quadrejada e casaco fino de malha. Excesso de roupa e transpiração levaram a tentativa de despir o casaco, acto condenado ao fracasso por não ser, aquele, tempo de se andar sem casaco. Atempadamente, foram recolhidos os materiais necessários para a tarefa: um balde com alguma cal previamente derregada, um balde vazio, no qual se transportava pincel para caiar, lixívia, panos e esfregão ou esfregões. Não vi algumas destas coisas e outras poderiam constar da lista, sendo o balde vazio contentor no transporte de tudo aquilo. À saída, passando pelo saguão, colhia a minha avó rosas brancas e cor-de-rosa, umas cinco ou seis, que eu levava, depois de terem sido retirados os espinhos e envolvida a base do ramo numa pequena prata. 
Não me recordo bem de fazer o caminho para o cemitério, talvez por ser rota comum a outras, com destino a sítios aonde a minha avó me levava, sempre sem grandes explicações. Íamos à mercearia, na esquina da minha rua com a dos meus avós, ou, com menor frequência, a outra, perto da escola; íamos cobrar a renda da casa alugada, em rua com nome de virtude, perto do jardim; íamos a casa da madrinha Inácia, onde havia bolachas de chocolate discretamente tocadas por naftalina, bustos de madeira e outras peças trazidas de Angola. Passávamos, apenas, uns anos mais tarde, diluída total ou parcialmente a inimizade iniciada aquando de partilhas das coisas de Espanha, por morte da minha bisavó Ángeles, pela casa do tio Felipe ou da tia Francisca, seus irmãos. A passagem pela casa do tio Felipe era feita no regresso da volta do cemitério e ia eu devidamente desperto para a evidência de que o Tio Felipe era boa pessoa, apesar da tia Vitória, sua esposa. O seu filho mais velho era boa pessoa, apesar da mãe e da relação íntima com o álcool. A filha era boa pessoa, apesar da mãe e dos seus olhos muito bonitos, evidência de perdição com homens, consumada ou a consumar, realidades equivalentes. O outro filho era altivo e haveria de estudar coisas em universidade, talvez também apesar de muita coisa. 
O cemitério era jardim, sem a estranheza que adquiriu, em formatos e terras diferentes, anos mais tarde. Eu ajudava, ocasionalmente, a ir buscar alguma água no balde, pelos caminhos previsíveis entre os túmulos, cuja parte mais alta, em geral, ficava acima da altura dos meus joelhos. Evoluía minuciosa limpeza das campas, entre o esfregar do mármore branco e o caiar das zonas de alvenaria. Ficava eu distraído pela luz, pelo cheiro a desinfectante e rosas. Em outras campas, sob vigilância ligeira da minha avó, ia brincando com um ou dois carrinhos que trazia no bolso, ou com um par de berlindes, fazendo, na terra não demasiadamente seca, com o calcanhar direito, covas suficientemente profundas para o efeito. O cemitério era o silêncio entrecortado por ruídos que em casa se ouviam: o esfregar,  o pano molhado a cair na pedra, a fricção húmida do pincel da cal na parede. Brincava eu por entre mortos e ruídos familiares, coisa entre estar em casa e no jardim, a brincar perto das pessoas que por lá passeiam, ou jogam às cartas com os amigos, ou se sentam em bancos. 
Fazia-se o regresso passando pela casa do tio Felipe, ponto na rota sem obrigar a grande desvio, e por igreja com estátua de Hércules a segurar o mundo na ponta do dedo. Informou-me a minha avó, como se falasse de coisa banal, de que, no dia em que dos dedos da estátua caísse a esfera de pedra representando a Terra, o mundo acabaria. E continuou o seu caminho, na sua marcha difícil, a coxear, comigo preso à mão direita, os baldes na outra. Fiquei esmagado pela possibilidade de que o fim do mundo estivesse ao alcance de uma escada, de um acaso, de um ligeiro respirar da Terra que perturbasse o Hércules de pedra no alto do frontão da igreja. Ali ao lado, ou melhor, acima das nossas cabeças, mas ao alcance da vista, a chave do Apocalipse. Leva-se uma vida a perceber a ténue fronteira entre vivos e mortos, entre o fim anunciado do mundo e aquele que ocorre a cada momento. Todos dias são de finados e por finar, de mortos enterrados ou por enterrar, de pecadores arrependidos e de impenitentes confessos, de todos os santos ou só de alguns.  Hoje foi dia de recordar o prazer de brincar no cemitério, de ver a cara satisfeita da minha avó, cara de dever cumprido, de a recordar num espaço onde se imaginou em vida a seguir o meu avô, quando ele morreu, a guardá-lo como se o ciúme fosse coisa que se levasse para outra qualquer vida, um espaço onde nunca quis ser enterrada, por não se querer debaixo da terra. E não foi, de facto, enterrada. Estão em gavetas próximas, não tanto quanto ela quereria, mas suficiente para que possa talvez descansar. Não acabou o mundo, mas acabou o meu com ela, aquele onde fazíamos caminhos com rosas na mão, onde apenas os dois éramos melhores do que quando estávamos mais, onde me impregnou de superstições, que ainda hoje tenho na pele, onde me ensinou a cozinhar sem se dar conta, onde era carinhosa desde não se notasse muito. Assim se equilibra o mundo na ponta dos dedos.

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