28/10/17

(re)play

Não estará ninguém perto de ti. O prédio onde viveste em criança, a curva que aquele descreve, acompanhando a rua na sua estrutura circular, parecer-te-á, por uns segundos, a tua casa de agora. Ocorrer-te-á o sabor, ao deslizar a ponta da língua nas superfícies, do verniz das janelas, da massa de vidros impregnada do mesmo verniz, na zona mais perto da madeira, o frio do vidro. A rua, a parede do prédio em frente, branca, quase sem janelas, casa vazia de noite, as irregularidades na justaposição das pedras do passeio parecer-te-ão insuportáveis. Jogarás ao berlinde nos sofás de napa verde dos teus avós e perceberás que a casa é já outra e outra ainda, a casa emprestada na cidade da montanha com cruz no topo. Estarás num comício em praça central com árvore centenária, campanha de Ramalho Eanes para presidenciais contra Soares Carneiro, canadiana azul vestida, colecção de calendários no bolso. Contigo, o teu pai e os teus filhos no estádio de Alvalade, vitória sobre o Marítimo com golo de jogador chileno. Perceberás que mudaste de óculos meia dúzia de vezes em meia dúzia de décadas porque mudas pouco, porque isso te assusta mais do que conduzir sem noção de perigos, a demasiados quilómetros por hora, como fazias uns anos atrás antes de, por razões que não interessam agora, começares a conduzir irritantemente devagar e a ouvir programas de rádio sem música. Ontem doía-te o joelho esquerdo, a anca esquerda, ocasionalmente o abdómen, logo abaixo das costelas, às vezes um pouco mais atrás, na zona do rim direito, mas hoje não sentes nada disso, diluíram-se as maleitas nas voltas da pista eléctrica de carrinhos, de marca Polistil, no cheiro do seu transformador quente, ao qual colas o nariz ou no ruído do combóio Märklin sobre os carris, diligentes todos nas suas viagens por caminho conhecido. Hoje, esperarias que não estivesse aqui ninguém e estão todos. E ocorrer-te-á uma poesia que te daria prazer dizer alto, com um sorriso quase feliz, mas a voz não sairá e dir-te-ão que não te canses. Hoje estará aqui quem pode, quem interessa e para esses começaste a cozinhar desde manhã para a carne ficar bem tenra e para, depois do almoço, se descansar de vez, algo como uma sesta.

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