20/12/17

luz de medo

O tigre tinha pelagem inusitada: diversos tons de castanho, listas quase da cor do barro e uma mancha vermelha na zona da boca. Jamais fora avistado qualquer tigre assim nas redondezas. Estavam acostumados a convívio secular com feras vindas da floresta, criaturas mágicas às quais se agrada com tributos de carne e ameaça de fogo. O respeito mútuo crescera e assim prosperou tudo, por muitos anos. Aquele era o primeiro tigre que chegava adulto à aldeia, sem antes ter feito qualquer aparição, e o medo começava a deliquescer em palavras que humedeciam pés, à passagem do chefe e da sua guarda.

Que seria melhor terminar com tudo antes de haver arrependimentos, que não ficariam as criaturas da floresta desiludidas, uma vez que o tigre da boca vermelha não seria uma delas, que o equilíbrio secular entre homens e feras seria desnecessariamente posto à prova, algo como tentar subir à montanha trepando por uma corda a arder, que o forasteiro tinha uma mancha demoníaca na zona da boca, sinal de danação e que com demónios não haveria pactos. 
Que o deixassem andar por ali, com respeito, contestava o ancião. Que lhe dessem a carne, como aos outros e que, se houvesse arrogância nos seus gestos, lhe brandissem uma tocha três vezes à frente dos olhos. Ganharia respeito, caso o não tivesse aprendido ainda, e passariam a sonhá-lo como uma das suas criaturas. 
Que a mancha vermelha seria sangue humano por correr e que haveria de arrepender-se quem desse guarida ao estranho, ao assassino, ao demónio. Haveria algo a fazer: quem estaria por nós? 

Ao longe, o ancião falava com as crianças, palavras sábias sobre respeito, convivência, a beleza de ter chegado ao meio deles, pela primeira vez, um exemplar de tigre diferente, com uma nobre mancha vermelha na zona da boca, um guerreiro por entre os tigres, talvez, que vinha ali depor armas e pedir santuário. Na clareira menor, a leste da aldeia, a pelagem do tigre ficou gradualmente mais vermelha, à medida que foi desligando dos seus o brilho eufórico do olhar humano, o do homem com a lança na mão. Ao longe, o ancião deixava lentamente de respirar e um fio de sangue corria, das suas narinas, pela face e peito, fundindo-se com as fibras da veste vermelha. Ao seu redor, as crianças compreendiam aquela placidez, aprendiam a ler as palavras com que se escrevem as histórias da vida e da morte, os segredos salvíficos e as sementes da guerra, do medo, do sangue que corre apenas para que haja histórias para contar. Sem que se veja, o medo não morre. E, se o fizesse, seria sempre um ténue fragmento de tempo antes da morte da esperança. Assim se tecem as coisas que são de tecer para que não venham tigres de boca vermelha ameaçar o que é conhecido. Assim se protege o que é nosso, com o medo a iluminar caminhos.

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