26/02/18

prazeres de Arsénio à beira-rio

A caixa de madeira deixava no ar um expectável cheiro a lenha húmida. Ao pé do rio, tudo parece cheirar a humidade. Junto aos troncos meio submersos, foram enterrados, por inúmeras gerações, os membros da família, todos, excepto os desavindos. Desses nunca se soube que terra lhes terá caído por cima, se alguma caiu. Pensava Arsénio em como não se lembrava de ter visto o rio a subir e a galgar a margem. Desde que tinha consciência de si, ou aquilo que em Arsénio corresponderia a isso, nunca o rio tivera essa ousadia, essa iniciativa, esse ímpeto. Tudo isto eram as coisas em que pensava Arsénio, perdido em equivalências de palavras. 'Um dia teria de acontecer' era algo que lhe ocorria e consumia tempo de cogitação. A possibilidade de saber os seus antepassados a banhos forçados era algo que o fazia sorrir. O que seria daquele desarranjo de ossos, e sabe-se lá de que outros vestígios, por ali a derivar entre água e terra, traçando rotas improváveis na camada de folhas caídas das árvores, com as lápides e as pesadas cruzes em pedra a manterem o formato do jardim da memória familiar? Como seria previsível, ninguém calculava o que tanto levava Arsénio a fazer as suas romagens de saudades e pensamentos agravados àquela zona meio sombria da margem. E ele ia e continuava a ir, só pelo gosto de imaginar que uma enorme cheia poderia ter este ou aquele efeito, patos a nadar na horta, ossos do tio Demóstenes ali soltos, junto das cenouras ou na boca da cadela do Freitas. Por cada pensamento destes, uma pedra mais na caixa de madeira, a substituir outra lançada ao rio. Tudo se transforma. De coisas simples se fazem  prazeres pouco ambiciosos.

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