17/02/18

doméstico

Emocionam-te as imagens de animais selvagens em jardim zoológico. É condição excêntrica de existência o estar-se confinado, a simular gozo pleno de liberdade. Emocionas-te por evidente auto-comiseração. És sempre tu, em cada tigre imponente. És feroz, a responder ao teu impulso mais primário, rasgando o triplo saco de serapilheira com a carne de cavalo embalada e deixada pelo tratador. Poderias ser símio gracioso e ágil que salta e supera obstáculos para recolher as frutas que o tratador deixou às nove horas da manhã, como habitual. És apenas tão feroz quanto o podes, tão autêntico quanto te deixam. Alimentas a ilusão de que podes dominar o teu território, impregná-lo com os teus cheiros, deixar por todo o lado rastos do sangue das tuas presas, mas sabes que, no final do dia, cai o pano e comes a máscara com a ajuda da água que te puseram na taça. Sabe-te a desinfectante em demasia, a água, e a carne tem o sabor do mel que deixaram para consolar os ursos, ou das ramagens que apanharam, de madrugada, para felicidade de girafas ou de outros bichos quaisquer, que com elas se console e alimente esperanças, se for caso disso. E gostas de rugir abundantemente, mesmo que o faças apenas para confirmar a ilusão, para que as dúvidas se dissipem em trovão bem comportado e destituído de perigo. São rugidos fátuos, pálidos e embalados hermeticamente em saquetas de plástico que poderiam estar em prateleiras de mercearia. És músculo exaurido no vácuo da embalagem. És tu todo assim, feroz doméstico de catálogo.

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