05/03/18

do ser-se Carlos

Subi a rua até à estação dos comboios para confirmar a hora a que chegaria a composição do final da tarde. Não queria que Rosa, a nova professora, esperasse por ali, num sítio desconhecido para ela, no qual eu seria o primeiro interlocutor, por falta de disponibilidade da funcionária da junta. Teria eu de acompanhá-la à pensão da D. Leonilde e ter cuidado com as aparências. Uma mulher, na terra pela primeira vez, a circular com um homem pelas ruas, à noite, implicava distâncias bem medidas e manobras evasivas evidentes. Professoras novas, entregues a trágicos acasos do desejo e de pecados de carne, não seriam novidade na terra e disso não queríamos mais, como sempre se dizia a este respeito.
As automotoras partiam e chegavam agora menos, sem que muito se desse por isso. Também a estação não seria já bem uma estação. Talvez tivesse vindo a regredir para condição de apeadeiro, com um pequeno casinhoto ao lado da zona de bilheteira, no exterior do qual o Carlos se sentava com o seu cão. O cão acudia por Rufino, Baltasar ou Cão, mas nada disto era certo porque estou em crer que, por diversas vezes, vi o cão seguir o Carlos depois de este ter dito: 'Sousa, anda, vamos procurar umas sopas.' Tudo variações sobre cenas de quadro já visto. Todos os apeadeiros ou estações de transportes têm, ou estão preparados para ter, o seu Carlos, com o seu Sousa, uma bilheteira ou sucedâneo, um casinhoto onde podem ser vendidos uns refrescos, umas águas, uns pacotes de batatas ou favas fritas e pouco mais. A professora que ali chegara há quase trinta anos, vinda bem do sul, tivera um caso de dez ou doze noites tórridas de Setembro com César Lamarosa,  o tipo do talho e, assim, tinha a aldeia ganho o Carlos, deixado ao cuidado da avó Isaura Lamarosa. Foi Carlos criado entre carcaças, inteiras ou desmanchadas, de bichos por comer e culpas por digerir, a pior das quais, publicamente difundida, resultava de aziaga combinação entre o ser 'feio como a mãe' e 'meio parvo como o pai'. O Padre Francisco Bouça, tenaz no combate ao maligno e amante de formulações nas quais o divino sempre acaba por combater coisas passadas abaixo da cintura, apressara o baptismo de Carlos por "recear que criança concebida à margem das leis de Deus e dos Homens, naquela humidade morna de sangues e carnes mal refrigeradas, com facas e cutelos à vista desde a semente", fosse "presa fácil de demónio atento e atraído por odores baixos."
Começou Carlos, desde muito cedo, a ir ver as automotoras, a olhar para elas talvez, a ficar por ali. Quando a escola desistiu dele, ou ele da escola, facto de apuramento improdutivo, juntou-se a ele um cão, talvez feio como a cadela sua mãe e meio parvo como o cão seu pai. Ambos ficavam à espera que chegasse ou partisse mais alguém, que uma encomenda volumosa fizesse caminho, que o vento arrastasse um saco vazio, que as galinhas da D. Teodolinda passassem a rede, do outro lado da linha, e se lançassem na aventura de desafiar o destino. Proferia Carlos palavras soltas, expressava com veemência cumprimentos a conhecidos e desconhecidos, fazia descrições avulsas do que observava no momento, objectos, movimentos de pessoas ou de pássaros, insectos a fazer a sua vida, tudo isto disparado em frases simples, por vezes justapostas como se delas se tivesse apossado um qualquer método de as tornar uma torneira programada para pingar verdades irrelevantes sem outra coerência que não a de provirem de Carlos. Assim ficava, sentado num tijolo que, ao sair, deixava arrumado atrás da parede, até ao dia seguinte. O cão olhava sempre atentamente, como se bebesse da voz de Carlos algo como entendimento do mundo. Alternava entre olhar para o Carlos e para aquilo que era descrito, ou aqueles que eram cumprimentados. Afirmo que entendia o cão a correspondência entre estes elementos: seria essa a sua função, testemunhar ou corroborar as acções de Carlos..
No luminoso dia em que chegou a Rosa, ao dobrar a última esquina, não vi o Carlos e percebi, sem qualquer dúvida, hesitação ou dramatismo, que o tínhamos perdido. Não precisei das múltiplas confirmações que foram deslizando pelas ruas, cafés, barbeiro, mercearia, tabacaria-papelaria-livraria, invariavelmente associadas a expressões acentuando a perda, falsas ou verdadeiras, outras precedidas de ‘bem se sabia que haveria de acontecer uma coisa destas’. Ninguém soube o que aconteceu, apesar de múltiplas teorias e descrições verosímeis e detalhadas de coisas que poderiam ter acontecido. Estes são os únicos factos reais, alheios a fantasias consoladoras de curiosos e moralistas: o corpo apareceu intacto, a cerca de trinta quilómetros a norte, junto à linha do caminho de ferro;  o cão estava por lá, deitado ao lado do corpo de Carlos, aparentando mimetizar a posição das pernas e braços, até ter sido levado por alguém, cuja identidade não foi revelada. 
Fiquei por ali cerca de uma hora, à espera da Rosa, tentado a ser eu o Carlos, a sentar-me no seu tijolo e a esperar que alguma alteração na paisagem ou na fauna do apeadeiro justificasse uma sumária descrição ou um cumprimento entusiasta. Ocorreu-me que os do talho iriam ficar aliviados, depois de passada a confusão da autópsia e a incontornável despesa do funeral, vertendo umas lágrimas e impando uns suspiros a roçar o sentido. Nunca soube nada da mãe, a professora fugida em desgraça. Ninguém quis nunca saber nada dela. Pensei ainda que talvez se justificasse um obituário para o Carlos, como ele o faria: ‘Aqui fica o Carlos. O Carlos viu tudo o que havia para ver e ensinou o Sousa a ver o mundo. O Sousa ficou grato por toda a eternidade de cão.’
Nesse dia, desceu a Rosa do comboio, olhou para um lado e para o outro e, como nos filmes, quando cruzámos o olhar, ficámos entregues a um amor correspondido até hoje. Nunca falei disto do Carlos com ela, julgo que por receio de que ressudasse o assunto da professora com o tipo do talho e não houvesse como contornar a ideia de que as tardes mornas de Setembro põem corpos em fogo e abrasam as carnes de professoras e tipos com lojas, neste caso, uma tabacaria-papelaria-livraria. Fosse eu dado a misticismos de garrafeira barata, ou aos livros que a D. Leonilde me encomenda para deixar na consola à entrada da sala de pequenos almoços da pensão, e fantasiaria sobre como éramos nós, a Rosa e eu, herdeiros da pura e ingénua alma do desaparecido Carlos, por tudo se ter revelado no mesmo dia: a sua morte e o nascimento do nosso amor. Seria ainda assim tudo estranho, como se fossemos uma indesejável e putativamente promíscua mistura sobrenatural a três, ou a quatro, se nisto incluíssemos o cão. Olharíamos então para o nosso pequeno Silvestre como se fosse o fruto de tudo isto e, em larga medida, o impróprio eco de coisas indevidas.
Acabei por me ir perdendo, muitas manhãs, sentado no tijolo do Carlos, nestas elucubrações sobre amálgamas de carnes e espíritos, tudo disfarçado de momento de pausa após saudável caminhada pela estreita estrada velha, voltas aparentes de corpo são a albergar mente sã. Vejo, às vezes, um ou outro cão a passar e a olhar-me com ar curioso e penso no Sousa, ou Baltasar, ou Rufino, o que quer que fosse, e quase me parece que esperam as minhas explicações, a minha descrição da realidade, o meu cumprimento efusivo aos que passam, uns mais estranhos que outros. 
Vou-me convencendo de que haverá talvez uma arte de ser Carlos, algo que apenas as estações de comboios, ou terminais rodoviários poderão acolher. Um aeroporto não permite que haja cães e tijolos para que alguém se sente e seja Carlos. Um aeroporto será sempre, por isso, um lugar menor.

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