16/03/18

maçãs e afinidades no talho e fora dele

Do balde de latão emana odor a rama de tomate, a figos, a maçãs vermelhas, daquelas pequenas e esbranquiçadas por dentro, que a prima Florbela só usa para os porcos por serem ácidas, mostrando indignação face ao interesse que nelas manifestamos. Destaca a prima que os amendoins foram torrados recentemente e que, na saca de pano, há uma morcela de farinha que deve ser passada, depois de fatiada, pela frigideira, com banha. Nada substitui a banha nestas coisas e noutras parecidas e, sobre isto, parece haver um acordo de sorrisos francos. Sorriem porque gostam uns dos outros, os primos e os avós. A morcela poderá ter vindo ou não do talho do Aristides e da Teresa. Não sei se os primos Florbela e Hernâni gostam das coisas do talho deles, provavelmente não. Comem os bichos que eles próprios matam lá na quinta, por não haver melhor. O avô gosta e tem confiança no Aristides. A mim assustam-me os filhos deles, corpos robustos de homens, olhos de crianças paradas à espera de um crescer que apenas será mensurável pela capacidade de usar facas e cutelos. Pressente-se neles o potencial para executar assaltos e outros crimes, sem sucesso nem remorsos, baixa sensibilidade ao preço da vida. Não é claro para mim porque gosta o avô do Aristides. É mais imediato se pensar nas razões pelas quais gosta a avó da Teresa. Tem um visual de cantadeira de rancho minhoto, nostálgica por efeito de reclusão conjugal no Algarve. Há algo de dramático na rotação do olhar e na forma teatral como arrasta as frases e os brincos longos, diva deslocada que percorre os poucos metros quadrados do talho semi-envolta em algo como xaile negro, fino, até chegar ao cumprimento próximo e caloroso, o abraço demorado à avó. A avó parece confortada com a proximidade lânguida e fraternal, nascida da sua condição de desterradas. Ela, forçada da sua Andaluzia para o Alentejo pela merda da guerra, que a deixou em terra de ninguém, fala como os de Barrancos que, sendo boa gente, segundo diz, não são ela, nem como ela e isso revolta-a. Ali estão e falam, na entrada do talho, acerca da vida, das doenças, das dores, do que seria bom se as coisas fossem como elas desejam, tudo como se o calor da tarde e o cheiro do talho pudessem ter sido transmutados em fresco salão de chá. Os homens entendem-se. Falam do avio, das carnes que convêm, dos cabrões do governo e da guarda republicana, do idiota do cabo do mar, dos maricas que vêm do estrangeiro, com cabelos compridos, motas, drogas e umas gajas à pendura, do preço do gás e da falta de educação da porra dos rapazes novos que querem enrolar-se com as estrangeiras e ter dinheiro, sem querer trabalhar.  O avô é, ao pé do Aristides e não apenas nessa relativização, um homem sofisticado e isso pode ser o que o atrai nestas trocas, ser o organizador do discurso, o elevador de categorias discursivas, o harmonizador das premissas argumentativas pela cartilha dos sindicalistas da empresa, à mistura com a conversa dos jornais bons. O Aristides é relativa e absolutamente rude. Imagino-o como o animal que, em improvável tropeção do destino e em implausível salto qualitativo na evolução das espécies, conquistou carta de alforria, direito a linguagem, uso de língua, passando, por isso apenas, talvez, a governar o talho. No Aristides sente-se essa humanidade recente, de primeira geração. É simpático porque consegue sorrir sob o fino e curto bigode, mas tudo é feito para dentro, tudo nele parece tender para uma implosão que acabará por desaguar em violência descontrolada que simples leis da física ou outras explicariam. A Teresa é, nele, uma espécie de fusível, de dissipador de tormentas que o desliga sempre a horas, excepto se houver briga entre os rapazes e o pai. O avô e o Aristides têm a mesma postura quase altiva, o mesmo queixo elevado, o nariz pronunciado, o hábito de falar com as mãos atrás das costas, elevando o peito ao declarar. O avô consegue fazê-lo em múltiplos contextos, ao contrário do Aristides. Tenho observado que o avô é algo camaleónico na sua capacidade para ir do quase Aristides ao quase Dr. Fialho, mantendo o interlocutor interessado e dando réplica consistente, que não defrauda, qualitativamente e pragmaticamente nivelada. O Aristides só mantém esta postura de homem dado ao diálogo ali, no talho. Fora deste, o Aristides fica acabrunhado, sente-se mal na roupa e, numa camisa branca, intuímos nódoas que lá não estão. Nunca o vi fora do talho e deduzo isto pela forma como olha para o exterior. O talho tem uma montra que deixa ver o outro lado da rua, uma rua pedonal que liga os dois lados da meia-vila, o da igreja e o de trás, a cara e o cu. Será a rua uma coluna vertebral, um espinhaço que tanto faz falta inteiro e erecto na ética da vida, como partido a preceito e salgado de véspera para um cozido de grão. Talvez na vida tudo se resuma a comida, a ossos, aos nossos e aos dos bichos que comemos, a maçãs, as dos porcos e as que comemos nós. Acaba até tudo por ser o mesmo, porque as que não comemos frescas, comemos pela via de ingerirmos atempadamente os porcos. O avô quase que concorda e diz que o amigo Aristides não deixa de ter razão, que agora é tudo uma confusão, homens e mulheres, frangos do campo e de aviário, comunistas e fascistas encapotados e amansados nos partidos. Tudo aquilo cabe no carro, tudo se leva para que haja comida e conversa à mesa durante a semana, sem precisar de ir à vila. Tudo viaja na condição de híbrido ontológico à espera de clarificação. 

Sem comentários: