05/04/18

do ser-se rua

Mais perto da esquina, a cor da parede e a luz parecem esbater-se. O passeio desfez-se um pouco na borda superior do lancil, à força de tanto ter havido por ali carroças a passar, sendo as ruas estreitas e o ângulo de viragem exigente. Sempre são as zonas de passagem as mais erodidas por acção de rodas, velhos a passear cães, vozes soltas, cães sem dono, bengalas, pássaros sem bando, chuva, maledicência, editais, notícias, bandos de pombos, berlindes perdidos, necrologias, botijas de gás, dejectos, ventanias e granizos, cadáveres em tempo de guerra, gritos em tempo de guerra, refugiados famintos em tempo de guerra. As zonas de passagem assumem um maior apuro dramático em tempo de guerra e o tempo de guerra justifica que se possa destruir sem critério e reconstruir como e onde se pode. Haverá coisas destruídas em tempo de guerra que poderão renascer em outro sítio mais ou menos distante, desmembradas ou por desmembrar. O tempo de guerra é avesso a corpos coerentes, a frases inteligíveis, a roupas lavadas, a suor de prazer. Tudo, até a raiva, se acumula num túnel, ou algo afim, com capacidade para armazenar sofregamente, até ao limite do insuportável, para que haja, quando tudo parece perdido, um salvamento de parte do conteúdo ou a sua asfixia. As percentagens de conteúdo salvo e por salvar são sempre variáveis, em função do tamanho do bigode do homem ou da mulher que comande a agressão e da elasticidade da pele moral do agredido. Por isso, as ruas acolhem, nas frestas dos empedrados, a memória de tudo o que foi e anunciam tudo o que será, ainda que em língua indecifrável. Assim profetizam ingloriamente as ruas há séculos e as guerras acabam por se suceder, à falta de ser compreendida a ladainha de conselhos avisados. Será essa a razão pela qual os soldados, no acto de ocupação, arrastam ruidosas solas de bota pelo chão. As botas de guerra propagam ruído com o objectivo de que as ruas se confundam e, assim, guardem memórias difusas, degeneradas, incapazes de contribuir para progresso na sua capacidade para se fazerem entender. O ruído das solas de soldado evita, se a situação o proporciona, que alguém suficientemente destituído do entendimento comum das coisas possa começar a reconhecer os signos e a fazer uma aproximação fatal à língua das ruas. Isto é plausível para as ruas com o piso em pedras justapostas, mas também para as de terra batida, ou mesmo as asfaltadas ou alcatroadas. Nestas últimas, as memórias são sempre mais minuciosas, mas também mais dispersas, menos fluidas do que nas empedradas. A terra batida, por seu turno, é altamente volúvel e retém com dificuldade memórias, mas consegue, fruto do seu dinamismo, camuflar melhor, ocultar e iludir botas de guerra, homens de guerra. O sangue é como as memórias, para efeito de circulação em piso de ruas. As ruas em que o sangue e as memórias se fundem em proporções muito variáveis expressam-se sempre com um misto de raiva e melancolia na voz, clamando por clássica vingança e expressando lamento sem esperança.

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