Mais perto da esquina, a cor da parede e a luz parecem esbater-se. O
passeio desfez-se um pouco na borda superior do lancil, à força de tanto ter
havido por ali carroças a passar, sendo as ruas estreitas e o ângulo de viragem
exigente. Sempre são as zonas de passagem as mais erodidas por acção de rodas,
velhos a passear cães, vozes soltas, cães sem dono, bengalas, pássaros sem
bando, chuva, maledicência, editais, notícias, bandos de pombos, berlindes
perdidos, necrologias, botijas de gás, dejectos, ventanias e granizos,
cadáveres em tempo de guerra, gritos em tempo de guerra, refugiados famintos em
tempo de guerra. As zonas de passagem assumem um maior apuro dramático em tempo
de guerra e o tempo de guerra justifica que se possa destruir sem critério e
reconstruir como e onde se pode. Haverá coisas destruídas em tempo de guerra
que poderão renascer em outro sítio mais ou menos distante, desmembradas ou por
desmembrar. O tempo de guerra é avesso a corpos coerentes, a frases
inteligíveis, a roupas lavadas, a suor de prazer. Tudo, até a raiva, se acumula
num túnel, ou algo afim, com capacidade para armazenar sofregamente, até ao
limite do insuportável, para que haja, quando tudo parece perdido, um
salvamento de parte do conteúdo ou a sua asfixia. As percentagens de conteúdo
salvo e por salvar são sempre variáveis, em função do tamanho do bigode do
homem ou da mulher que comande a agressão e da elasticidade da pele moral do
agredido. Por isso, as ruas acolhem, nas frestas dos empedrados, a memória de
tudo o que foi e anunciam tudo o que será, ainda que em língua indecifrável.
Assim profetizam ingloriamente as ruas há séculos e as guerras acabam por se
suceder, à falta de ser compreendida a ladainha de conselhos avisados. Será
essa a razão pela qual os soldados, no acto de ocupação, arrastam ruidosas
solas de bota pelo chão. As botas de guerra propagam ruído com o objectivo de que
as ruas se confundam e, assim, guardem memórias difusas, degeneradas, incapazes
de contribuir para progresso na sua capacidade para se fazerem entender. O
ruído das solas de soldado evita, se a situação o proporciona, que alguém
suficientemente destituído do entendimento comum das coisas possa começar a
reconhecer os signos e a fazer uma aproximação fatal à língua das ruas. Isto é
plausível para as ruas com o piso em pedras justapostas, mas também para as de
terra batida, ou mesmo as asfaltadas ou alcatroadas. Nestas últimas, as
memórias são sempre mais minuciosas, mas também mais dispersas, menos fluidas
do que nas empedradas. A terra batida, por seu turno, é altamente volúvel e
retém com dificuldade memórias, mas consegue, fruto do seu dinamismo, camuflar
melhor, ocultar e iludir botas de guerra, homens de guerra. O sangue é como as
memórias, para efeito de circulação em piso de ruas. As ruas em que o sangue e
as memórias se fundem em proporções muito variáveis expressam-se sempre com um
misto de raiva e melancolia na voz, clamando por clássica vingança e
expressando lamento sem esperança.
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