Corre agora um vento fresco. Dizem que é natural, nesta altura do ano. Não é nada de extraordinário saber isso, como não é nada de extraordinário saber outras coisas, muitas das quais acabei por reter ao longo da vida. Tenho a memória carregada de factos e impressões, sabores, odores, cores, ambientes e texturas, temperaturas. Creio que tudo isso virá até de um tempo antes de mim. Creio firmemente, a cada dia que passa, que me lembro de um tempo antes de mim, uma vida algo informe feita apenas de um desejo imenso. Talvez me vá, com a idade, convencendo de outras coisas, de outros que tenha sido e revele tudo como memórias irrefutáveis. Poderá vir um tempo no qual já não seja eu, no qual haja apenas esse fluxo de eventos a emergir em rajadas de coisas parecidas com memória minha. Temo que possa ter dúvidas sobre como serei enquanto eco, mas adivinho-lhe traços. Se fosse outro, seria mar de praia em dia de outono a caminho para inverno. Se pudesse ser outro, seria mesmo esse mar de praia em fim de dia de outono, envolto numa manta leve de lã, a contemplar uma lareira com o meu amor ao lado e todos os meus por ali, a rebentar livremente na areia. Quando for outro, que não se leve a mal o dizer que afinal mudei de ideia e que gostaria antes de ser uma conformada cesta de fruta em natureza morta. Serei um diferente, a cada dia, e nem saberei se sou feliz por isso, ou se cumpro apenas uma profecia feita em criança, por mim ou por outro quase como eu, sem o saber, sem o sabermos. Nunca o saberemos. Um dia será apenas um dia, do tamanho que quiser quem nele esteja, enquanto não chega a noite para nos abrir o corpo com um vento fresco, natural nesta altura do ano.
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