24/08/09

"De pedra fiz meus sapatos,
De fogo fiz um chapéu.
Ao chão fiquei sempre preso,
Ardi e fui para o céu."

Declamou, com um forçado esgar de alegria e leveza pueris, esta quadra. Era a festa de final de ano. Era a sua segunda classe. E chorou por ter declamado uma quadra que não fazia sentido para ele. Nem para ele, nem para ninguém. E chorou porque a professora lhe disse que era bonita, a quadra, e que era de um poeta conhecido por escrever poesias para crianças. E chorou porque a mãe lhe disse que era lindíssima, a quadra, e que ela estaria orgulhosa dele por ser capaz de reproduzir aqueles versos habilmente justapostos. E, com as suas sete sílabazitas métricas, certinhas no versejar, se ditou uma sentença de morte, um túmulo feito em raízes, um sonho dilacerado pelas chamas benfazejas que libertam e levam à glória.
Na seu túmulo, uma fotografia amarelada ou sépia, ovalada. Por baixo, uma quadra que alguém achou adequada. Choraria, se a lesse, por ser verdade. Reza assim:


"Nasceu para ser submisso,
Nunca sonhou voar,
Cumpriu-se pacatamente:
Descanse em paz neste lar."

10 comentários:

x disse...

oh. sem palavras*

CCF disse...

Não se nasce para ser subsmisso, ou não se deve nascer :) Muito menos para arder e ir para o céu! Há que soltar devagarinho algumas amarras, explorar as margens de liberdade que estão escondidas, conquistar um bocadinho cada dia de tantos sonhos que trazemos dentro. Um abraço.
~CC~

Graça Pires disse...

Um texto lindíssimo, delicado e triste que nos deixa a pensar.
Obrigada pelas palavras que deixou.
Um abraço

x disse...

já não estava à espera que se comentasse aquele texto, e quando vi o que tinhas escrito fiquei realmente feliz.

pensei, de facto, sou mesmo diferente (há um tempo atrás teria pensado «e, estou errada», agora não»). é tão bom saber que és feliz, que há pessoas felizes.

a palavra felicidade é pouco pronunciada e pouco sentida, acho. as pessoas têm medo de dizerem, sou feliz, porque é como se de certa forma isso significasse que não estão à espera de mais, e fosse uma espécie de agoiro. faz-me confusão, sim. talvez porque a minha ideia de felicidade estivesse (está) sempre ligada a uma ideia de simplicidade, de equilíbrio que resulta das coisas pequenas de cada dia, por isso escrevi aquele texto. obrigada por teres comentado, do fundo do coração e obrigada pelo que partilhaste do teu mundo. foi um sinal de esperança e continuará a ser sempre que o ler.*

Coisas da Vida disse...

Baudolino! Que bem que escreve!
Fiquei encantada com a sua boa e expressiva escrita. Tem aqui textos preciosos, que nos dão prazer e nos conduzem à reflexão. Textos que revelam a sua sensibilidade!
Agradeço a sua visitinha ao meu modesto blog. Obrigada pelo seu comentário. Até sempre.

x disse...

mudanças? gosto muito,acompanha a beleza das palavras. parabéns *

x disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Manuel Nunes disse...

Agosto é o mês das searas maduras.
É colher as espigas, é comer o pão.
A Poesia é apetecível.
(Lembro-me da Natália: "Ó subalimentados do sonho, a Poesia é para comer!")
Belos textos.

Ignotu disse...

Sem palavras mesmo...
Já tinha saudades de o ler.

Graça Pereira disse...

Lindo, parece um vaticínio. Li e reli porque me "encheu", encantou-me a simplicidade das coisas "grandes". Uma boa semana Graça