28/09/09

Inusitado manifesto: 'Por Plutão'

Quando eu nasci, Plutão era um planeta. Era o último dos 'nossos' planetas, do 'nosso' sistema solar. Era uma daquelas espécies de famílias repetidas na escola, misto de composições musicais e provas olímpicas como o alfabeto, a tabuada do sete ou o nosso nome completo, tudo dito, cantado ou recitado no intervalo de tempo de que precisa um relâmpago para rasgar o céu.
Hoje, por mais que Plutão lá esteja e, eventualmente, em nada tenha mudado, foi oficialmente retirado da vetusta fotografia de família. E tudo isto, qual teoria científica da conspiração, com uma perfídia semelhante àquela que põe alguém fora da família porque se descobriu que o código genético não corresponde ao do patriarca, ou da matriarca da família: eras nosso irmão. Bem sei que tudo isto assentará em critérios que não ouso nem quero, de forma alguma, beliscar mas, nas minhas imaginárias viagens pelo Universo, Plutão era a última escala ainda em casa, com uma, se calhar imaginada, centelha longínqua de sol pálido. Para lá de Plutão, a atracção do desconhecido. Gelado e diminuto, era também o primeiro indício, na viagem de regresso, de que estaria a chegar a casa. Dobrado aquele cabo de todos os confortos, pouco importava a sua classificação. Plutão daria conselhos avisados na partida e receberia, algum tempo depois, os viajantes cansados de braços abertos.
Com o passar do tempo, e porque continuamos a planear as nossas viagens por espaços mais inóspitos que o sideral, continuo também, não raras vezes, a desejar essa passagem por Plutão e aí adormecer, a salvo da tempestade, no aconchego do abrigo seguro, nessa escala de um vital anonimato redentor. Gelado e diminuto, sentirei sempre o apelo de um planeta como Plutão onde alienar-me não corresponda a perder-me de vez.
(Há ainda a possibilidade de, com o passar do tempo, eu ir ficando mais estranho... Espero que não me passem a chamar outra coisa qualquer por me ser retirado um qualquer estatuto... Se calhar já chamam e continuo a ser eu... Como Plutão.)

4 comentários:

x disse...

oh, só a ler o teu texto pensei nessa questão. plutão será sempre plutão... é estranho dizeres aos teus filhos «no tempo do pai plutão foi considerado um planeta»? pergunto porque me imagino saudosa, ao fazê-lo quando os tiver. adorei o texto e o papel do gelado*

CCF disse...

E assim, com coisas tão pequenas mas tão importantes, nos construímos. Plutão estará sempre aí, a cada dia que nascer.
~CC~

Claudia Sousa Dias disse...

acho que além de gelado deve estar mergulhado na noite eterna. não é à toa que o associam à ideia da morte e o Hades.

;-)


beijinho


csd

P disse...

Cláudia, nunca associei Plutão à noite eterna. Sempre o imaginei, numa lógica de tele-romantismo, 'the last friendly frontier'... ou, numa lógica randómica de branqueamentos saudosistas e inofensivos, apeteceu-me mostrar 'a outra face', ao estilo de 'lutar pelos direitos de Plutão'...
Continuas a achar que não estou no meu juízo... Já estive melhor.