30/12/09

“Auxiliar alguém, meu amigo, é tomar alguém por incapaz; se esse alguém não é incapaz, é ou fazê-lo tal, ou supô-lo tal, e isto é, no primeiro caso uma tirania, e no segundo um desprezo. Num caso cerceia-se a liberdade de outrem; no outro caso parte-se, pelo menos inconscientemente, do princípio de que outrem é desprezível e indigno ou incapaz de liberdade.” (Fernando Pessoa, O Banqueiro Anarquista)



Faz sentido que nos deixem dormir um sono fétido debaixo de um vão de escada, ou um clássico sono num caixote de cartão, debaixo de um viaduto ou de uma ponte, ou um irónico sono no átrio de uma igreja? Faz sentido que os anos passem e as nossas ficções, com homens, mulheres e crianças lá dentro sejam um navio que ninguém abandona, por ordem alguma, nem antes nem depois dos ratos que invariavelmente habitam o porão? Faz sentido que comamos doze passas, uma por cada badalada, até que o novo ano respire pela primeira vez? Faz sentido celebrar com euforia esse nascimento, sem lhe ouvirmos sequer os primeiros gritos, o primeiro choro, a dificuldade em processar o ar do mundo? Faz sentido que celebremos com pueril esperança o virar de uma folha no calendário, como se celebrássemos a chegada de um messias? Faz sentido que acreditemos num messias que se revela apenas pelo virar de folhas em calendários? Faz sentido ansiar por um futuro igual a hoje, sem viagem feita, o mesmo mundo, os mesmos olhos, as mesmas palavras?

Dormimos todos um sono sem casa. Dormimos todos de costas voltadas para a indignidade, a nossa. Que a liberdade nos auxilie e lance sobre nós os seus olhos redentores.


2 comentários:

Sentidamente disse...

Faz sentido pensar assim!... Faz sentido utilizar toda a arte de dizer e construir um texto tão belo e tão certo…
Envergonha pensar que vivemos a espalhar luminosidades e coloridos, escondendo e não substituindo, os negros que incomodam o nosso olhar, evitando que nos atinjam no coração!
Se não conseguimos modificar essa realidade, sejamos comedidos quando falamos em termos universais de solidariedade, justiça e amor…
Obrigada pela reflexão que fez e pela que me induziu a fazer.
Até sempre

filipelamas disse...

Um grande abraço de Bom Ano!